PROCESS OF GUILT

PROCESS OF GUILT + WELLS VALLEY + MURRO @ R.C.A. Club, Lisboa | 10.11.2023 [reportagem]

No fim de semana passado, os PROCESS OF GUILT andaram em périplo nacional e passaram pelo RCA Club, em Lisboa, acompanhados pelos WELLS VALLEY e MURRO.

Já depois de, no dia 7 de Outubro, terem assinado uma demolidora actuação no festival SUM – Silves Urban Music, os PROCESS OF GUILT regressaram aos palcos na semana passada, com concertos a 9 de Novembro, no Maus Hábitos, no Porto; a 10 de Novembro no RCA Club, em Lisboa e a 11 Novembro, no Stereogun, marcado a estreia dos músicos em Leiria.

À semelhança do que tem acontecido no último ano, desde o lançamento do «Slaves Beneath The Sun», estas datas alicerçam-se neste lançamento e terão como motivo adicional a celebração da história dos PROCESS OF GUILT construída ao longo dos últimos 20 anos“, explicou a banda num comunicado à imprensa quando as datas foram anuncidas. “Serão mais um testemunho daquilo que são as actuações de PROCESS OF GUILT ao vivo num ambiente de maior proximidade onde poderão esperar máxima intensidade, entrega, e peso, muito peso.

Pois bem, aparentemente, o prometido é devido e foi mais ou menos o que serviram. Já lá vamos a esse “mais ou menos”, no entanto. Remetemo-nos aqui à data no RCA Club, em Lisboa, na sexta-feira, 10 de Novembro, que contou com os WELLS VALLEY e os MURRO na abertura.

Passavam poucos minutos das 21:30 e estes últimos já estavam em palco, com o mestre de cerimónias Hugo Cão em tronco nu, exibindo orgulhosamente na mão umas folhas com as letras dos temas que iam interpretar. Atente-se que os MURRO são um trio – voz, guitarra, bateria. É só isso. No entanto, com Cão entre o narrador altivo e o berrador enraivecido, e uma dupla de instrumentistas bem criativa, o grupo atirou-se a uma amálgama de géneros que, não sendo de descrição fácil, mantêm o ouvinte atento.

Com a crítica social, muitas vezes desgarrada, como fio condutor, os MURRO saltam do thrash para o punk mais hardcore, mas também não renegam alguns compassos mais arrastados, e expurgam os seus demónios disparando para todas as direcções, enquanto cospem canções com títulos como «Tanques» ou «Bastonada».

Com pouco mais de um mês passado desde a edição do seu mais recente LP, provavelmente a maioria das pessoas na sala achava que os WELLS VALLEY iam concentrar o alinhamento no material da novidade «Achamoth». Desses, estavam só TODOS enganados. A banda passou pelo álbum, sim, interpretou dois temas, mas foram mesmo só esses («Princeps» e «Vessel Possessor») num total de seis. Agora, será que isso beliscou a actuação dos músicos comandados por Filipe Correia, um dos arquitectos dos aplaudidos CONCEALMENT? Não, nem por sombras.

Os WELLS VALLEY inauguraram a sua discografia em 2017 com o álbum «Matter As Regent». Dois anos depois, estrearam o EP «The Orphic» e, em 2019, chegou um segundo longa-duração, com o título «Reconcile The Antimony», que apresentava uma densidade mais aproximada ao post doom e mais contrastes com blasts a roçarem o black metal mais cirúrgico. Com a pandemia, o disco teve menos impacto do que seria expectável, mas, apesar de um acerto de formação pelo meio, os músicos não perderam tempo e aqui estão com música nova.

A partir do momento em que, depois de um curto line check, arrancaram com a «(Pleroma)», os músicos não deram tréguas e, daí ao final com a «Forty Days», envolveram os presentes com canções amplas e labirínticas, que vão chegando lentamente, de forma cerebral e vanguardista. Instrumentalmente exímio, o trio formado por Filipe conta também como o Pedro Mau na bateria e, de há uns tempos a esta parte, com o André Hencleeday, dos Candura e Men Eater, que também têm disco novo a caminho, no baixo. Apesar da mudança, mostraram-se sólidos e já muitíssimo bem entrosados, altamente dinâmicos e excepcionalmente herméticos – como se quer, de resto.

POG

Lembram-se daquele “mais ou menos” ali em cima? Pois é, se por um lado o alinhamento não foi longo o suficiente para nos servirem uma celebração de duas décadas de carreira, o mais recente registo de estúdio foi celebrado em todo o seu esplendor, com apenas dois dos temas tocados a não figurarem no alinhamento do álbum de 2022. O que é, na verdade, mais que justo. Neste ciclo de promoção, o quarteto eborense radicado em Lisboa ainda não se fez à estrada lá fora e, editado a do ano passado, o «Slaves Beneath The Sun» já fez um aninho, mas os PROCESS OF GUILT ainda podem puxar muito por ele. Quanto à promessa de “máxima intensidade, entrega, e peso, muito peso”?. Totalmente cumprida.

O nosso JCS começou a sua resenha ao «Slaves Beneath The Sun» a dizer que era seguro afirmar que os PROCESS OF GUILT já atingiram, por esta altura na sua carreira, um patamar de maturidade que está reservado, às bandas líderes, artisticamente falando, dos seus campos estilísticos. Bandas que operam dentro dos parâmetros que elas próprias criaram, e já estão, tanto quanto possível, no degrau acima de quaisquer faux-pas que grupos “menores” possam enfrentar. Não é que o sacana tinha mesmo razão?

Dúvidas restassem, nesta passagem pelo RCA Club, os PROCESSS OF GUILT mostraram que são uma daquelas bandas que já não sabe dar maus concertos, dê lá por onde der. Gonçalo Correia, sentado atrás do seu kit, deu o tiro de partida para uma actuação de cerca de uma hora com as batidas na tarola que dão início à «Scars», seguida por mais uma novidade, «Victims». Ao terceiro tema, uma recordação mais distante, com uma demolidora «Fæmin». Nós sabemos, sim; estas adjectivações, “demolidora”, “poderosa”, “massiva”, “monolítica”, “arrasadora”, já se tornaram recorrentes para descrever a sonoridade e a postura da banda.

Certamente vão ser abundantemente utilizadas para descrever esta actuação e, mesmo que continuem a ser bastante ilustrativas da estética da banda, já não traduzem na plenitude o seu núcleo sonoro. Temas como «Breath» e «Hoax», esta última do «Black Earth», de 2017, tocados back to back, provam isso. Os blocos de riffs massivos permanecem totalmente intactos, mas as canções, mais independentes umas das outras, sem estruturas melódicas e harmónicas ubíquas, sem evocação de repetições, são peças que juntas formam um puzzle, com as partes a formarem o todo que são os PROCESS OF GUILT.

Quando se fala em PROCESS OF GUILT, sobretudo ao vivo, é sintomático que se fale também de “jarda” – e sim, essa paixão pelo groove demolidor, pelo rugir dos amplificadores, pelas cordas encharcadas de distorção e pelo feedback do Hugo Santos e do Nuno David, apoiada numa secção rítmica cada vez mais sólida e arrasadora, que fica completa com Custódio Rato no baixo, ainda tem uma quota-parte importantíssima no que esta gente faz –, mas actualmente são, cada vez mais, muito mais, que “apenas” bujarda sonora. São também ambiente, mais sofrido, mais sufocante.

DISCLAIMER

Vimos o concerto ao lado de um casal que nunca tinha visto ou ouvido os PROCESS OF GUILT. O motivo que os trouxe ali não se prende propriamente com a melomania, mas ficámos a dividir a atenção entre os dois, na casa dos 50 anos, sem qualquer interesse que seja por sludge, doom, pós-doom, black metal ou qualquer outro derivado da música extrema, e o que se passava em palco. As reacções foram muito mais consentâneas com o resto da plateia do que se possa pensar à partida e, enquanto ainda soavam os últimos acordes da «Host», que encerrou a actuação, estavam feitos dois fãs improváveis.

Talvez porque, com os PROCESS OF GUILT, não é difícil entrar na “onda”, desde que estejamos dispostos a isso. Até porque aquilo que expurgam são sentimentos com que é fácil identificarmos, mesmo que não estejamos a seguir as letras. E sim, é verdade que há pouca luz em palco, as silhuetas dos músicos mantêm-se recortadas entre nuvens de fumo, a comunicação é reduzida apenas ao essencial (e só na despedida) e o drone que corre através do PA entre temas não dá azo a grandes conversas, mas isso tudo contribui que esteja tudo focado no que interessa – a música. A partir daqui, é preciso juntar tenso, intituivo e visceral à longa lista de adjectivos que descrevem uma das melhores bandas no underground nacional.

Resta dizer que, quaisquer receios que os músicos ou o promotor do espectáculo pudessem ter em relação a este regresso à capital num dia em que ocorriam pelo país uma série de outros eventos destinados a uma fatia de público de nicho, cada vez mais de nicho, foram rapidamente atiradas para a valeta. O público compareceu em massa, com a sala de Alvalade a registar uma lotação bastante composta. No que toca aos PROCESS OF GUILT, como vem sendo habitual, deixaram toda a gente fixada no que se ia passando em palco e inspiraram as ondas de headbanging feroz que já se esperam das actuações do quarteto.