CARCASS

CARCASS + BRUJERIA + ROTTEN SOUND @ Music Station, Lisboa | 27.01.2025 [reportagem]

Entre o grindcore visceral dos ROTTEN SOUND, a irreverência dos BRUJERIA e a mestria histórica dos CARCASS, a passagem da ‘Europa Rigor Mortis 2025’ por Lisboa foi uma celebração de tudo aquilo que o metal extremo tem de melhor.

Não há como negar que o tempo passa, de facto, muito rápido. Já foi há trinta anos que surgiram em cena os ROTTEN SOUND, quarteto que rapidamente se tornou uma força respeitada no universo do grindcore, mesmo que, aos olhos de muitos, permaneçam ainda algo subestimados. No entanto, para os aficionados do género, representam um equilíbrio raríssimo entre ferocidade e técnica, sendo que o seu percurso não só ajudou a solidificar o grind no novo milénio como uma linguagem musical crua e intensa, mas a trouxe também até o ponto culminante que foi o lançamento de «Apocalypse», oitavo álbum longa-duração e o proverbial petardo de violência sónica, no ano passado.

Ainda que seja esse o LP que os mantém na estrada, vamos um pouco mais atrás. Para compreender todo o impacto dos ROTTEN SOUND é impossível ignorar o «Murderworks», de 2002, álbum que estabeleceu os alicerces do seu som, misturando o grindcore abrasivo com um toque de death metal sueco. Desde aí, a banda manteve-se fiel à fórmula, mas também ousou refinar a abordagem. Com o LP do ano passado, reafirmam essa identidade brutal enquanto revelam uma renovada energia que mantém os ouvintes em suspenso do início ao fim —  muito à semelhança do que aconteceu neste muito aguardado regresso a Portugal.

Exactamente à hora marcada, os quatro músicos subiram descontraidamente ao palco da Music Station e arrancaram com «Self», «Power» e «Pacify», naquilo que só se pode descrever como um verdadeiro soco sonoro que encapsulou tudo o que os ROTTEN SOUND representam: bateria impiedosa a mil à hora, riffs cortantes encharcados de distorção HM-2 (que, a meio da sala, não furava tanto na mistura quanto seria expectável) e uma descarga vocal visceral, que dominou rapidamente todo o espaço e acabou mesmo a inspirar as primeiras movimentações no pit.

Sami Latva, na bateria, lidera o ataque, mostrando uma precisão e intensidade que elevam as actuações do quarteto ao nível de aulas magistrais de grindcore. Mika Aalto e Matti Raappana formam uma secção rítmica que alterna velocidade desmedida e momentos de groove esmagador, enquanto o Keijo Niinimaa exibe uma performance vocal que transcende o habitual, oscilando entre os gritos desgarrados e growls cavernosos.

Embora definida pela velocidade avassaladora, a banda não descura a dinâmica. Faixas como «Sharing» surpreendem ao desacelerar para grooves mais lentos e cheios de balanço, só para explodirem de novo em secções de pura destruição. Já «Suburban Bliss» e «Targets», interrompida por problemas técnicos, mostraram como os ROTTEN SOUND sabem explorar de forma tão certeira e inteligente as nuances do punk, enquanto petardos como «Salvation», «Trashmonger» ou «Blind», as três que encerraram esta actuação de meia-hora, destilam uma energia hardcore que galvaniza qualquer plateia.

Resultado, nesta paragem lisboeta da Europa Rigor Mortis 2025 tornou-se uma vez mais óbvio que o segredo dos ROTTEN SOUND está na sua capacidade de manterem a agressividade intacta enquanto introduzem variações subtis que mantêm a plateia em bicos dos pés —  e, neste caso, foram 30 anos de estrada canalizados em 21 micro-descargas de pura intensidade, em que cada membro entregou uma prestação tão precisa quanto devastadora.

ALINHAMENTO

01. Self | 02. Power | 03. Pacify | 04. Equality | 05. Koiranoksennus | 06. Suburban Bliss | 07. Renewables | 08. Lazy Asses | 09. Inhumane Treatment | 10. Targets | 11. Void | 12. Insects | 13. Ownership | 14. Sharing | 15. Nothingness | 16. Slay | 17. Western Cancer | 18. Sell Your Soul | 19. Salvation | 20. Trashmonger | 21. Blind

Por esta altura, o clima gélido e chuvoso que se fazia sentir no exterior contrastava com o fervor que já dominava o interior da sala, agora bem mais cheia. O ambiente carregado, mas repleto de energia e de antecipação, não deixava dúvidas: os BRUJERIA estavam prestes a subir ao palco. Apesar de serem, em termos estritamente musicais, os terceiros classificados neste cartaz no que toca à intensidade sonora, o impacto da sua entrada em cena foi imediato. A introdução com «Brujerizmo» foi o rastilho que bastou para o caos organizado que o colectivo, agora reduzido a um quarteto de voz, guitarra, baixo e bateria, e sem “estrelas” na formação, consegue orquestrar.

Contudo, como se sabia à partida, esta actuação, a primeira cá no burgo após a perda de dois membros icónicos do grupo —  o vocalista, letrista e cofundador Juan Lepe, mais conhecido como Juan Brujo, e o vocalista e samplista de longa data Ciriaco “Pinche Peach” Quezada — , teria sempre de ser algo mais que “apenas” um concerto. A tour, que passou ontem na Music Station, e hoje aterra no Hard Club, no Porto, ocorre apenas quatro meses após a morte de Brujo e foi apresentada como uma homenagem carregada de significado e, no final, traduziu-se numa celebração de legado.

Para esta série de concertos, Henry “El Sangrón” Sánchez assumiu então o papel de berrador principal, com a responsabilidade acrescida de honrar o legado deixado por Brujo e, apesar da inevitável mudança na formação ser notória (sobretudo na falta de carisma), a essência provocadora e dos BRUJERIA permanece intacta. O alinhamento incluiu uma mistura dos temas clássicos que definiram a carreira do grupo e temas do mais recente «Esto Es Brujeria», e a actuação, carregada de uma energia quase juvenil, foi um reflexo fiel do que os fãs esperam deles.

Momentos de caos na plateia e interação da banda com o público abundaram, das provocações do novo mestre de cerimónias ao ponto alto da noite, que se deu com a interpretação do icónico tema-título do LP de estreia «Matando Güeros», que encerrou o set e desencadeou uma proverbial explosão de energia colectiva. De resto, De resto, como já é tradição, a noite só terminou quando a hilariante adaptação da «Macarena», transformada neste caso em «Marijuana», acabou de soar nas colunas de som.

ALINHAMENTO

01. Brujerizmo | 02. El Desmadre | 03. Hechando Chingasos (Greñudos Locos II) | 04. Vayan Sin Miedo | 05. La Migra | 06. Ángel De La Frontera | 07. Chingo De Mecos | 08. Christo De La Roca | 09. Desperado | 10. Colas De Rata | 11. La Ley De Plomo | 12. Revolución | 13. Consejos Narcos | 14. Raza Odiada (Pito Wilson) | 15. Matando Güeros

Criados em 1986, num momento em que o talentoso guitarrista Bill Steer ainda fazia parte de uma das formações mais lendárias dos Napalm Death, com quem gravou os álbuns clássicos «Scum» e «From Enslavement To Obliteration», ao longo de duas décadas os CARCASS transformaram-se eles próprios também em lendas. Primeiro, estabeleceram as regras para o híbrido de death/grind, pintado em tons de sangue e tripas, com dois títulos incontornáveis do underground dos anos 90, «Reek Of Putrefaction» e «Symphonies Of Sickness»; e depois, com a sequência «Necroticism – Descanting The Insalubrious» e «Heartwork», o death metal melódico, deixando uma marca indelével não só na N.W.O.S.D.M. mas também no fenómeno metalcore.

Entretanto, ainda antes da edição de «Swansong», decidiram votar-se a um longo hiato, voltando apenas ao activo em 2007. «Surgical Steel», editado seis anos depois, foi o primeiro LP que o quarteto formado por Steer e Jeff Walker —  e que fica agora completo com Daniel Wilding na bateria e Nippy Blacklord na guitarra —  gravou desde meio da década de 90, e serviu a derradeira prova de que, afinal, mesmo depois de tantos anos a julgar-se que os CARCASS estavam mortos e/ou enterrados, a dupla veterana ainda tinha um grande disco de melodeath metal dentro de si.

Temas como «Thrasher’s Abbatoir», «Unfit For Human Consumption» ou «Captive Bolt Pistol» deram rapidamente provas de que a resiliência compensa (estranhamente, nenhum deles se ouviu ontem) e, numa mistura equilibrada dos melhores momentos dos dois discos mais consensuais da fase “adulta”, encapsularam tudo aquilo que aprendemos a esperar dos britânicos ao longo dos tempos. Focados na tarefa de provarem que estavam bem vivos e ainda longe da decomposição, os CARCASS versão Séc. XXI voltaram à carga em 2021 com o poderoso «Torn Arteries» e, mais uma vez, mostraram-se tão letais e cirúrgicos como sempre… Talvez demasiado cirúrgicos ao ponto de, agora, serem um pouco previsíveis?

Perdoem-nos a reflexão, mas é impossível não olhar para os CARCASS no palco da Music Station, há mais de quatro décadas nestas andanças, com todas as suas idiossincracias e contradições, e não pensar que esta pode bem ser a última vez que os vimos. Ao longo dos anos, o bom do Bill Steer jurou que não fazia sentido juntar de novo a banda e, verdade seja dita, ainda não se tornou claro se o seu coração está, de facto, nesta tarefa de andar pelo mundo a regurgitar clássicos do death metal quando as suas maiores paixões são o jazz e os blues.

Numa altura em que parece haver inclusivamente uma certa indecisão em relação a qual será o próximo passo, a verdade é que neste quarto regresso a Portugal só na última década, tornaram claro que, a não ser que aconteça um qualquer milagre de renovação de público (algo que não se verificou ontem, com uma plateia claramente +40), os CARCASS correm o sério risco de cair no demasiado óbvio. Atente-se ao alinhamento, por exemplo, que foi em (quase) tudo semelhante ao que apresentaram na última visita por cá.

Começaram logo com a «Buried Dreams», seguida da mais recente «Kelly’s Meat Emporium» e da bem clássica «Incarnated Solvent Abuse, exactamente como tinha acontecido em 2023, no Lisbon Tattoo Rock Fest; as piscadelas de olho a trechos de temas dos discos menos consensuais antes de se atirarem a mais um dos incontornáveis não sofreu mudanças e, no geral, aquilo a que se assistiu foi basicamente revisão da matéria dada. Ainda assim, e muito porque a matéria continua bastante interessante e é entregue de forma convincente (apesar do PA da sala, pouco potente ou talvez inadequado à sua configuração acústica), aquilo a que assistimos foi a uma verdadeira festança.

No final de contas, como ninguém resiste ao apelo de um nome deste gabarito, com natural destaque face às bandas que os antecederam, os quatro britânicos entregaram um concerto memorável, carregado de energia, técnica e um balanço que só eles conseguem alcançar. A setlist, ainda que sem surpresas, foi uma viagem através do tempo, abrangendo dos primeiros LPs crus e agressivos (a sequência «Genital Grinder», «Pyosisified (Rotten To The Gore)» e «Exhume To Consume» mostrou que esse material mais primitivo tem agora um brilho diferente, com novos arranjos e a claridade que faltava às versões originais de estúdio) até ao refinamento melódico que caracteriza os trabalhos mais recentes.

E, como mencionado relativamente aos medleys, nem o controverso (para alguns, talvez para a grande maioria) «Swansong» foi deixado de lado. Embora muitas vezes divisivo entre os fãs mais ferrenhos, o LP de despedida teve o seu lugar em momentos estratégicos do concerto, com o icónico riff da «Black Star» a ouvir-se por instantes, usado como introdução à orelhuda «Keep On Rotting In The Free World», ou a melodia da «Tomorrow Belongs To Nobody», que antecedeu a «Death Certificate».

Longe de parecerem forçados, estes apontamentos devem ter funcionado como uma surpresa para quem ainda não os tinha visto nos últimos anos e trouxeram um toque de “nerdice” aos procedimentos. Para os demais, brilha sempre a nostalgia, mostrando que a banda está em paz com o passado – mesmo aquele que foi alvo de críticas acesas. O público, evidentemente rendido desde o primeiro acorde, foi uma parte integrante do espectáculo: cada riff, batida e gutural de Jeff Walker foram recebidos com um entusiasmo quase eufórico, criando a atmosfera que se alimenta tanto da energia no palco como da resposta cheia de vigor da plateia.

Era, de resto, impossível não notar a química entre banda e público, um diálogo implícito onde cada música parecia um presente cuidadosamente escolhido para os fãs. Em palco, o Sr. Walker, agora de cabeça rapada, mostrou-se mais calado que o habitual e destacou-se pela paixão com que vive cada momento; o Bill Steer, por seu lado, com aquela presença simultaneamente descontraída e cativante, continua a alternar riffs incisivos com solos melódicos, onde tudo faz para destilar a sua paixão bluesy.

Os temas mais recentes do repertório também brilharam com intensidade, provando que, pelo menos até há uns sete anos, os CARCASS não eram só uma banda de culto dos anos 90, mas também uma força versátil e criativamente relevante. Em suma, serviram uma prestação que deixou questões no ar. sim, mas que acabou por ser mais que apenas uma lição de peso e brutalidade, funcionando como uma celebração da história de um dos mais lendárips e influentes nomes do death metal.

ALINHAMENTO

01. Buried Dreams | 02. Kelly’s Meat Emporium | 03. Incarnated Solvent Abuse | 04. No Love Lost | 05. Tomorrow Belongs To Nobody / Death Certificate | 06. Dance of Ixtab (Psychopomp & Circumstance March No. 1 in B) | 07. Black Star / Keep On Rotting In The Free World | 08. Genital Grinder | 09. Pyosisified (Rotten To The Gore) | 10. Exhume To Consume | 11. 316L Grade Surgical Steel | 12. This Mortal Coil | 13. Corporal Jigsore Quandary | 14. Ruptured In Purulence | 15. Drum Solo | 16. Heartwork