Se é verdade que o tempo tudo consome, a 3 de Novembro de 2009 os SLAYER provaram que há destruição que também é criação — e que, no fim, o mundo não precisa de ser salvo. Basta pintá-lo de sangue.
Em 2009, o mundo do metal vivia um período de indecisão. O novo milénio já tinha visto o thrash perder protagonismo, as velhas guardas pareciam esgotadas e os palcos eram dominados por novas linguagens extremas — do death metal ao black metal, passando ainda pelo nu-metal. As figuras míticas dos anos 80 enfrentavam a sombra da sua própria história.
Os METALLICA ainda tentavam apagar o gosto amargo do «St. Anger» com o regresso a meio gás de «Death Magnetic»; os MEGADETH procuravam reencontrar-se após sucessivas mudanças de formação; os ANTHRAX flutuavam entre vocalistas e direcções. E depois havia os SLAYER. Imperturbáveis, teimosos, como que a desafiar o tempo.
Quando «World Painted Blood» chegou às lojas, a 3 de Novembro de 2009, poucos esperavam que um disco lançado por uma banda com vinte e sete anos de carreira pudesse soar tão urgente. No entanto, foi exactamente o que aconteceu. Tom Araya, Kerry King, Jeff Hanneman e Dave Lombardo reapareceram como uma unidade feroz, mais próxima do instinto que propriamente da nostalgia. O LP atravessa onze temas em pouco mais de 40 minutos, sem excessos, sem gordura — um ataque limpo e meticulosamente controlado. Mais de quinze anos depois, essa energia continua a ser desconcertante.
A história que conduz até «World Painted Blood» é feita de alguma turbulência e persistência. Após o monumental «Seasons In The Abyss», de 1990, o último grande disco da era clássica, SLAYER entraram num ciclo de fragmentação. Lombardo abandonou o grupo, Rick Rubin afastou-se da produção directa, e o equilíbrio que sustentava a tríade lendária — «Reign In Blood», «South Of Heaven», «Seasons In The Abyss» — desfez-se. O grupo sobreviveu, mas com cicatrizes.
Álbuns como o «Divine Intervention» e o «Diabolus In Musica», de 1994 e 1998) mostraram lampejos de brutalidade, mas a consistência parecia perdida. Foi só em 2006, com o regresso de Lombardo em «Christ Illusion», que os SLAYER voltaram a soar como um organismo inteiro, aquela entidade em que o caos se transformava em ordem pura. Esse renascimento atingiria o auge três anos depois.
Gravado em Los Angeles com Greg Fidelman — colaborador de Rick Rubin e responsável pelo som cru e directo que se ouve —, o «World Painted Blood» apresentou uma banda que sabia exactamente aquilo que queria: um disco que soasse humano, sem retoques excessivos, como se o ouvinte estivesse a poucos metros da bateria de Lombardo. E essa proximidade é, de facto, o primeiro choque. O som é seco, quase documental, mas respira vida. É o oposto da produção plastificada que dominava o metal da época.
O tema-título, «World Painted Blood», abre o LP com uma das introduções mais arrepiantes do catálogo dos SLAYER. A tensão cresce devagar, o riff serpenteia, até que o caos explode finalmente num turbilhão que parece desenhar o próprio Apocalipse. Segue-se «Unit 731», talvez o momento mais devastador do disco, com Lombardo em modo animal, a preencher cada espaço com viradas que são pura violência rítmica.
Em «Snuff» e «Hate Worldwide», o thrash regressa ao seu estado primitivo: rápido, cruel, mas sempre preciso. Há ainda «Beauty Through Order», que funciona como uma ponte para a lentidão ritual de «Seasons In The Abyss» — uma canção em que a melodia e o horror se equilibram de forma quase mística. No entanto, o álbum não é apenas uma exibição de força física por parte dos SLAYER; é também o mais humano e consciente da longa carreira da banda.
«Americon», por exemplo, afasta-se das temáticas infernais e mergulha na política real, com Tom Araya a cuspir versos contra o comércio de sangue e petróleo — “It’s all about the motherfucking oil”. As incursões no mundo tangível é rara nos SLAYER, mas não lhes retira um grama de identidade: apenas prova que o inferno também existe na Terra. Já em «Human Strain», a banda transforma o medo biológico em ritmo maquinal, antecipando o colapso social e ambiental de uma civilização à beira do esgotamento.
Hoje, sabendo o que aconteceu depois, há algo de profundamente simbólico numa revitação ao «World Painted Blood». Em 2013, Jeff Hanneman acabaria por falecer, e com ele desapareceu metade da alma criativa dos SLAYER. A banda ainda lançaria «Repentless», um LP enérgico, mas sem a mesma centelha, e encerraria a carreira temporariamente em 2019. Retrospectivamente, o «World Painted Blood» soa como o último momento em que todos os elementos clássicos se alinharam pela última vez: lirismo profano, os riffs implacáveis e o motor imortal de Lombardo. É um testamento, não intencional, mas inevitável.
Do ponto de vista sonoro, o álbum desafia a própria estética do thrash moderno. O excesso de nitidez poderia ter-lhe roubado o mistério, mas, paradoxalmente, foi isso que o tornou tão vibrante. Onde «Hell Awaits» parecia emergir de um abismo reverberante e «Reign in Blood» soava como uma tempestade de fogo, o «World Painted Blood» é puro chão — concreto, físico, sem véus. É o som dos SLAYER como quatro homens em plena combustão criativa, registado com a frieza de uma câmara de vigilância.
Hoje, ouvir este disco é regressar a um instante em que o metal extremo reencontrou o pulso primário. É recordar que a violência sonora pode ter uma forma bem delineada, e que a brutalidade também pode ser bela quando executada com propósito. Mais do que uma simples revitalização, o «World Painted Blood» foi a prova cabal de que os SLAYER não precisavam de nostalgia nem de reinvenção: bastava-lhes existir, tocar juntos, e o mundo voltava a tremer.
















