Marginália e Imaginário

MARGINÁLIA E IMAGINÁRIO: O recheio do recreio

O “half time show” não é de hoje.

Na Europa da Época Moderna, a comédia cantada em palco — a Commedia in musica — foi, com particular ênfase, desenvolvida por autores e intérpretes italianos num curioso formato chamado Intermezzo. Ora, estes intermezzi cómicos eram os intervalos das chamadas Opera seria e consistiam em pequenos espectáculos independentes, caracterizados pelo humor burlesco e produzidos a pensar no aproveitamento do cenário e da orquestra das óperas que fossem cabeças-de-cartaz.

Por vezes obra de compositores e libretistas de obscura posição, cujos nomes, infelizmente, se perderam, algumas destas farsas foram criadas por autores que estabeleceram uma fama que perdurou até hoje. É o caso de La serva padrona (A criada patroa, 1733), opera buffa que o compositor italiano Giovanni Pergolesi (1710-1736) criou para servir de intermezzi a Il prigionier superbo (O prisioneiro orgulhoso). O enredo desta ópera séria em três actos arquitecta-se num drama medieval passado na corte norueguesa, mas o público não se sentiu atraído pela obra e ela só foi encenada novamente no final do século XX — pelo contrário, o êxito da curtíssima La serva padrona (com libreto de Gennaro Federico) manteve-a nos palcos até à actualidade. 

Sucinta farsa de enganos, conta a história de um nobre de idade avançada, solteirão, que é dominado por uma jovem criada que o manipula a casar-se com ela. À distância, são personagens que poderão antecipar a caricatura contemporânea de certos hábitos galantes do século XVIII, no modo como eram desempenhados pelos peraltas e faceiras: essas espécies de sedutores janotas, ou dândis, enfeitados de lacinhos nas cabeleiras empoadas e vestidos de jaqueta, punhos de renda e sapatos de fivela, que muitas vezes se perdiam em amores fátuos. Mas creio que a popularidade da ópera se deve mais à música frisante e vistosa, cujos primeiros riffs me fazem lembrar, de alguma forma, o frenesim dos Looney Tunes.

A estreia francesa de La serva padrona, na Academia Real de Música, em Agosto de 1752, originou uma polémica musical que ficou conhecida como Querela dos bufões, pois a companhia cómica italiana que representou o espectáculo atendia por este nome: a querela teve como base o escândalo de uma ópera cómica, estrangeira ainda por cima, ter sido levada ao palco numa casa de óperas sérias e não no teatro da Comédie-Française onde tinham lugar as farsas e as comédias (como as de Molière).

Na verdade, as farsas também indicam pelo nome a sua condição interludial, porque este significa “recheio”: uma farsa era, precisamente, o recheio de uma outra representação; neste caso, o intervalo de outra peça ou ópera — ou num rasgo de teatralidade que Pergolesi aprovaria, o recheio do recreio.