Entre memórias partidas, recepção controversa e o impacto na cena alternativa, Chino Moreno e Abe Cunningham recordam o álbum que dividiu os DEFTONES e os levou a encontrar outro rumo.
Ao longo das últimas duas décadas, os DEFTONES cimentaram a sua posição como uma das bandas mais influentes e aplaudidas da música pesada contemporânea. Entre experimentação sonora, crises internas e momentos de absoluta inspiração, os norte-americanos souberam resistir às tempestades ocasionais e, na verdade, em muitos casos conseguiram transformar a turbulência em arte. Um dos momentos de ruptura aconteceu a 31 de Outubro de 2006, com a edição do «Saturday Night Wrist».
Aproveitando uma das mais recentes passagens da banda por Portugal, sentámo-nos com Chino Moreno e Abe Cunningham nos bastidores da MEO Arena, onde os dois músicos revisitaram um dos discos mais enigmáticos e controversos da sua carreira.
Gravado ao longo de três anos em diferentes cidades e estúdios, «Saturday Night Wrist» foi marcado por um ambiente de instabilidade dentro da banda. Chino Moreno não escondeu as dificuldades: “Três anos depois e ainda não tínhamos saído do buraco, só nos enterrámos mais fundo. O grupo estava ainda mais fragmentado e é o disco menos Deftones que alguma vez fizemos, porque foi todo construído por partes.” O baterista Abe Cunningham reforça a ideia, descrevendo o registo como uma criatura disforme:
“É uma espécie de Frankenstein, sem dúvida.”, dispara ele a rir-se Essa fragmentação foi literal, no entanto. Algumas canções nasceram em Malibu, outras no Connecticut, Sacramento e em Los Angeles. Não havia unidade, nem presença constante de todos os membros no mesmo espaço criativo. “Basicamente, não estávamos focados e acabámos com um amontoado de ideias”, continua Chino, lembrando que, apesar de tudo, algumas faixas se destacaram pela força emocional e estética.
“Havia partes mesmo muito boas… A «Cherry Waves», por exemplo, continua a ser fantástica, mas não deixa de ser um puzzle. A bateria é das sessões que fizemos em Malibu…” Ao que Abe acrescenta: “Acho que, na verdade, esse tema tem partes captadas em três sítios distintos.” Ora, esse método de trabalho caótico reflectiu-se não apenas na sonoridade, mas também no modo como os próprios músicos se viam enquanto colectivo.
Chino Moreno, a voz inconfundível dos DEFTONES, não poupa palavras: “Esse disco não foi feito como banda. São cinco músicos a porem papelinhos com ideias num boné, a abaná-lo e a cruzarem os dedos para que o resultado não seja terrível.” Ainda assim, com o passar do tempo, tanto Chino como Abe conseguem olhar para o álbum com outro distanciamento. “Mesmo assim é um disco que ainda gosto de ouvir de vez em quando. É uma trip ouvir aqueles temas e tentar perceber como foram construídos”, admite o baterista.
Chino conclui que, apesar de todas as fracturas, o «Saturday Night Wrist» até acabou por se tornar num espelho fiel do momento vivido pela banda: “Lá está, é outro reflexo perfeito do que estávamos a passar naquela altura.”
Apesar de ter sido alvo de críticas mistas no momento da sua edição, «Saturday Night Wrist» contém algumas das composições mais atmosféricas e experimentais dos DEFTONES, como «Hole IIn The Earth», «Mein» ou «Cherry Waves», temas que despertam ainda hoje debates entre os fãs. Foi também o último LP da banda a contar com o baixista Chi Cheng antes do acidente que o afastaria da música, conferindo-lhe um peso emocional ainda maior na discografia do grupo.
Hoje, quase duas décadas depois, o disco é lembrado como um retrato cru de uma banda em crise, mas também como um ponto de viragem. A luta criativa e pessoal que moldou «Saturday Night Wrist» abriu caminho para a resiliência e reinvenção que se tornariam claras nos trabalhos seguintes, como «Diamond Eyes», de 2010, onde os DEFTONES reencontrariam a sua identidade coletiva. E sim para compreender a importância gobal do álbum, é essencial regressar ao contexto de 2006.
O metal alternativo vivia uma encruzilhada: o auge comercial do nu-metal tinha já ficado para trás, e muitas das bandas associadas ao movimento tentavam reinventar-se. Enquanto alguns nomes foram desaparecendo do mapa sem grande alarido, os DEFTONES procuravam manter-se relevantes através da experimentação.
A crítica recebeu «Saturday Night Wrist» de forma dividida. Algumas publicações elogiaram a ousadia e a densidade atmosférica do disco, vendo nele uma prova de maturidade artística. Outras, porém, acusaram-no de falta de foco e de coesão. Para o público, o impacto foi semelhante: os fãs mais antigos estranharam a natureza fragmentada das composições, enquanto outros viram no álbum uma oportunidade de mergulhar num lado mais etéreo e arriscado da banda.
Pesem as críticas à altura da edição, o primeiro single, incontornável «Hole In The Earth», destacou-se pelo equilíbrio entre melodia e agressividade, garantindo forte rotação em rádios de rock alternativo e MTV, e ajudando a consolidar a presença dos DEFTONES numa época em que o espaço mediático era cada vez mais competitivo. Já «Mein», que contou com a participação de Serj Tankian (dos SYSTEM OF A DOWN), mostrou a vontade de abrir horizontes, ainda que a faixa não tenha tido a mesma repercussão comercial.
Com o tempo, a percepção sobre «Saturday Night Wrist» alterou-se. Se em 2006 muitos o consideraram um registo menor quando chegou aos escaparates, mas hoje começa a ser visto como mais um capítulo essencial para compreender a metamorfose dos DEFTONES. A fragmentação que outrora foi apontada como defeito passou a ser entendida como reflexo honesto de um período conturbado.
Curiosamente, essa honestidade acabou mesmo por conquistar uma base fiel de ouvintes, tornando o disco uma espécie de peça de culto dentro da discografia da banda. canções como a «Rats!Rats!Rats!», a «Xerces» ou a «Kimdracula» ganharam um estatuto especial nos círculos mais devotos aos DEFTONES, precisamente pela sua estranheza e carácter inacabado. Ainda para mais, revisitar este álbum no contexto actual, com um novo disco estrondoso acabado de editar, permite compreender melhor o percurso dos músicos de Sacramento. E o que na altura pode ter soado a desunião e desordem, hoje surge como parte essencial da sua narrativa de sobrevivência.
Entre sombras e desilusões, o «Saturday Night Wrist» permanece como um documento sincero de um momento em que os DEFTONES quase se perderam — mas que, paradoxalmente, ajudou a garantir a sua longevidade. No fim da conversa com Chino e Abe, fica nitidamente a sensação de que, ao contrário de outros capítulos, este álbum não será nunca visto como um consenso. Contudo, é precisamente nessa sua imperfeição que reside o fascínio.
















