ABBATH

ABBATH + TOXIC HOLOCAUST + HELLRIPPER @ RCA Club, Lisboa | 13.01.2024 [reportagem]

Com duas vigorosas descargas de thrash revivalista a morderem-lhe os calcanhares, o icónico ABBATH mesmo teve de suar as estopinhas para fazer jus ao seu legado neste regresso a Lisboa.

A saída de ABBATH dos deuses nórdicos IMMORTAL em 2015 é tão estranha e triste quanto a fuga de K.K. Downing dos JUDAS PRIEST ocorrida quatro anos antes. No entanto, por muito estranho que possa parecer, fomos nós quem mais ganhámos com isso. Se, por um lado, as bandas de raiz continuaram com firmeza a assegurar o seu legado, por outro, fomos brindados com a criação de dois projectos a solo homónimos, que nos mostram dois ícones obstinados do metal energizados e com algo a provar.

A verdade é que três álbuns e quase uma década após ter encetado a sua carreira nominal, por esta altura até custa a acreditar que o Sr. Olve Eikemo tenha passado tanto tempo a fazer caretas sob as grilhetas estilísticas dos IMMORTAL. Desde que lançou a estreia a solo em 2016, o músico norueguês deixou vir ao de cima o brio brincalhão, a excentricidade e a atitude rock’n’roll desgarrada que tinham sido mantidas sob controlo nos reinos gelados de Blashyrkh e, de há uns anos a esta parte, tem andado alegremente à solta por esse mundo fora a entreter uma fiel base de seguidores.

Não é por isso propriamente estranho que o RCA Club, em Lisboa, tenha registado lotação esgotada, com a sala literalmente a rebentar (demasiado) pelas costuras, para receber aquela que foi a terceira vinda de ABBATH ao nosso país, depois da estreia no palco do VOA – Heavy Rock Festival e da mais recente passagem pela capital, como “suporte” aos WATAIN.

Desta vez, o músico norueguês gozou finalmente de estatuto de cabeça de cartaz por cá, apoiado por duas bandas de categoria – e que, verdade seja dita, forçaram a grande atracção da noite a dar tudo de si para não ser literalmente cilindrada por duas descargas de thrash vigoroso e cheio de garra.

Ao nosso lado, na gigantesca fila para entrar na sala de Alvalade, os HELLRIPPER eram descritos como “os MOTÖRHEAD a fazer versões dos VENOM”, o que, sem estar totalmente longe da verdade, acaba por ser uma avaliação demasiado simplória para descrever todo o talento do grupo liderado com punho de ferro pelo vocalista e guitarrista James McBain. Já lá dentro, escassos minutos após o início da actuação, a atmosfera era eléctrica, com os músicos escoceses a evocaram o glorioso speed/thrash dos 80s de uma forma incrivelmente credível e muito eficaz. Rápidos, constante, intensa e implacavelmente rápidos, os HELLRIPPER foram incríveis.

Na estrada há quase uma década a amadurecer e destilar o melhor blackened speed metal, os músicos foram recebidos com aplausos e gritos de euforia… Aliás, seria um mero eufemismo dizer que a multidão enlouqueceu quando McBain e a sua comitiva começaram a debitar a sua fúria metálica. O circle pit abriu-se de imediato, os corpos moviam-se ao ritmo frenético dos temas e os stagedivers voavam sobre as filas da frente. Em temas como «Vampire’s Grave» e «Hell’s Rock’n’Roll», logo na abertura, ou «From Hell» e «All Hail The Goat», este thrash sangra black e heavy metal, mantendo uma dose generosa de groove e oferecendo diversão a fãs de diversos subgéneros da música extrema.

Muito familiares, os HELLRIPPER apresentam uma amálgama de várias influências que podiam colidir ou soar excessivamente derivativas; no entanto, como um chef com estrela Michelin, McBain parece medir a quantidade ideal de cada condimento para que tudo acabe por fluir na totalidade. Verdade seja dita, é preciso menos da metade do alinhamento para que nos surja de imediato na cabeça uma questão pertinente – se esta é “apenas” a banda de abertura, será que o cabeça de cartaz consegue superar isto? No final, acabaram por assinar a melhor actuação da noite e não há como não lhes dar todo o crédito por terem disparado com todos os cilindros e explodido com todas as expectativas.

A seguir, subiram ao palco os já veteranos TOXIC HOLOCAUST que, com o seu thrash muito 80s também, conseguiram manter a fasquia da intensidade bem no alto durante grande parte da actuação. Apoiado em riffs enérgicos e numa abordagem letal, o trio liderado por Joel Grind tratou de reacender o fogo na plateia desde o primeiro instante e foi gloriosamente presenteado com ondas de mosh incessante, muito crowdsurfing e copos de cerveja a voarem perigosamente sob a cabeça dos presentes.

Para isso muito contribuiu um alinhamento de “clássicos”, com canções como «Acid Fuzz», «Wild Dogs» ou «Nuke The Cross» a levarem-nos numa viagem aos gloriosos 80s na Bay Area e, claro, a incentivarem a loucura generalizada que, por esta altura, era bem palpável dentro da sala – aliás, nem aqueles que preferiram ficar confortavelmente a observar no primeiro piso ficaram indiferentes à energia que brotava daquele palco. Incansáveis, os três músicos deram literalmente o que tinham para dar e, no final, «The Lord Of The Wasteland» encerrou com chave de ouro mais uma actuação muito celebrada.

Retornando às digressões limpo e sóbrio após um meltdown que ficou para a história, ABBATH e a sua trupe homónima foram recebidos de regresso a Lisboa com aclamação, mas não com a mesma energia arrebatadora que se sentiu na sala durante a actuação dos grupos de abertura. Felizmente, o músico pode ter sido coagido legalmente a sair dos IMMORTAL, mas ninguém pode impedir que, pelo menos em espírito, continue a levar consigo o legado da sua banda de sempre – e, claro, foram os temas dessa fase da sua carreira que acabaram por recolher maior consenso dos presentes.

Uma coisa é certa: embora o ex-frontman dos autores de «Sons Of Northern Darkness» tenha assinado uma actuação competente e sólida, não há como negar que, nesta estreia em nome próprio em Portugal, foram colocadas a descoberto muitas das fraquezas do seu material a solo.

Isto pode ter muito a ver com as expectativas pessoais de quem vos escreve, mas a maioria dos temas mais recentes é dolorosamente intercambiável, faltando-lhe aqueles ganchos que fizeram o material da sua ex-banda inesquecível. E sim, desde o último LP que fez com os IMMORTAL,o modelo de negócios de ABBATH deixou de ser criar iconografia e passou a ser apenas vender iconografia – bastava, de resto, dar um vista de olhos ao merch disponível –, mas pondo essa análise mais profunda de parte, a verdade é que acaba por não haver grandes defeitos à prestação do músico.

O estilo de riffs único que já se tornou marca registada produz música inteiramente à sua medida e, ampliado pela indumentária extravagante, evoca a grandeza gélida do Ártico. Em palco, a fórmula resulta numa espécie de dissonância cognitiva; o conceito é, inegavelmente, larger than life e até um bocadinho parvo, mas com músicos e audiência completamente comprometidos com as suas respectivas partes, não há como negar que são sinónimo de diversão. Além disso, este veterano dos grandes palcos sabe dar aos fãs exactamente o que querem e, de forma até bastante generosa, temperou o alinhamento da noite com diversas versões de originais dos IMMORTAL, intercalados com as músicas dos seus três álbuns a solo.

Abrir com «Hecate», «Acid Haze» e «Dream Cull» é uma óptima forma de começar um set, mas foram «The Rise Of Darkness», «In My Kingdom Cold», «Beyond The North Waves» e «One By One» provocaram o tipo de entusiasmo que ABBATH certamente deseja poder inspirar com as faixas de «Dread Reaver», Por outro lado, «Warriors», do projecto I. também se revelou um bom momento, com as cabeças a moverem-se em uníssono ao som dos seus riffs sísmicos.

Ainda assim, este não é certamente apenas um exercício de nostalgia e temas como «Ashes Of The Damned», «Fenrir Hunts», «The Artifex» ou, a fechar a actuação, «Winterbane» e «Endless» parecem estar a ganhar força com o tempo. Resultado: envolto num espesso nevoeiro que muito dificultou a vida aos fotógrafos, com o seu carisma e a oratória já característica entre músicas, ABBATH suou literalmente as estopinhas, mas deixou claro que está bem, verdadeiramente de volta e, ainda por cima, em boa forma.