Vamos já tirar do caminho a fastidiosa discussão do “é/não é black metal”? E vamos fazê-lo com uma citação de um dos elementos que definiu o arquétipo mais comum do black metal que conhecemos hoje em dia, um tal de Vegard Sverre Tveitan, mais conhecido no nosso meio como Ihsahn. Disse o cavalheiro numa entrevista há uns tempos (e não é a primeira vez que fala deste assunto) o seguinte: “To me, the whole cultural policing of what you’re allowed or not allowed to do as an artistic expression, that’s contrary to the black metal ethos. This rulebook of what you’re supposed to do, or not, for it to be categorised as black metal, that is the antithesis of black metal, but that’s just in my book. I take it as my prerogative that I do whatever the hell I want and therefore, by definition, that is black metal.” Para que fique claro, não, claro que boa parte de «Zeal & Ardor», e até se pode tirar as aspas e referirmo-nos à carreira toda da banda até agora, não é black metal a não ser nesse espírito conceptual de rebeldia, liberdade selvagem e oposição visceral à religião organizada. O próprio Manuel Gagneux, o cavalheiro suíço-americano por trás dos Zeal & Ardor – quase na totalidade, já que para este disco voltou a fazer tudo sozinho, depois de se ter socorrido da sua banda ao vivo para a gravação do anterior «Stranger Fruit» -, o admite livremente. E quando diz que é mais black metal que muitos dos que se auto-intitulam 100% black metal ortodoxo, di-lo com um sorriso provocador, sabendo perfeitamente os “botões” que está a pressionar. Basicamente – há para aqui black metal ao barulho, chamem-lhe isso ou outra coisa qualquer, nobody cares, e o Manuel muito menos. Desde que ouçam a coisa.
E pronto, já chega desse assunto, porque há tanto para discutir, e tão mais interessante. Como sabem, escolhemos os Zeal & Ardor para serem capa da nossa última edição impressa, e não foi uma decisão difícil. Por mais que tratemos de géneros de música (pesada, extrema, o que quiserem, para englobar tudo – o que é LOUD!ável, basicamente) que têm uma ligação umbilical à sua história e às suas raízes, mais do que qualquer outro, e que lidemos bem – alguns só lidam com isso, aliás – com álbuns tradicionalistas e que “já ouvimos antes”, desde que feitos com personalidade, precisamos também desesperadamente de coisas novas, de gente que, enfrentando sempre coros de haters, quebre os moldes e desafie o status quo das especificidades dos estilos e subestilos. Os Zeal & Ardor, quando rebentaram na cena com o single «Devil Is Fine», foram uma pedrada no charco desse género. Note-se, sem inventarem, concretamente, nada de totalmente novo e nunca ouvido antes. Este exercício de estilo, que é o que isto era ao princípio, “limitou-se” a juntar coisas existentes de uma forma que não tinha sido feita antes. Gospel e espirituais negros do tempo da escravatura com black metal e outros rasgos de música extrema, com uma certa base electrónica/industrial, apesar de não muito óbvia, a ligar tudo. Esta ideia, com o dedo que o senhor tem para a escrita de malhões daqueles que ficam na memória, e de slogans líricos daqueles que dá gosto repetir – tentem ouvir este álbum e não andar pela casa a gritar ou a cantarolar “where’s your fucking god?“, “death to the holy!” ou “and the church burns“, por exemplo – e a fórmula de sucesso até parece simples.
Mas não é, especialmente quando a ideia não é fazer um one-off. Em boa hora o Gagneux decidiu avançar com isto e fazer dos Zeal & Ardor uma banda a sério. Apesar do fascínio de «Devil Is Fine» (o tema), não era óbvio que houvesse aqui pernas para andar e continuar a desbravar o terreno. E como o próprio confidenciou ao nosso Luís Pires na bela conversa que tiveram nessa LOUD! #250, o trajecto discográfico até agora tem sido precisamente baseado nessa jornada de descoberta. O que é isto que eu criei, e onde é que posso ir mais? A certa altura, parece ter percebido que, como em tantas outras bandas que extravasam limites estilísticos, é a atmosfera e a personalidade que conta, mais do que qualquer pormenor sonoro específico. «Zeal & Ardor» é, de longe, o disco mais sólido do projecto até agora, mas não chegaram a este ponto reduzindo o seu espectro de inspiração, ou cingindo-se a uma fórmula só. Antes pelo contrário – sendo o mais sólido e mais coerente álbum dos três (e mesmo contando com os EPs), é também o mais variado. O contraste entre os espirituais e o metal extremo continuam a ser a alma do som da banda, sim, mas há tanto, tanto, tanto para explorar. A dronezada ambiental que acompanha o sinistro tema de abertura (com o qual se juntam ao estrito clube de artistas que têm um tema que é o nome de um álbum que é o nome da banda), o post-rock extremo de «Emersion» (provavelmente os melhores três minutos e meio de post-rock dos últimos anos), o quase gospel-pop extraordinariamente belo e sombrio de «Golden Liar», os riffs monolíticos à homem das cavernas no centro do malhão ultra-destruidor que é «Death To The Holy» e também da tensa atmosfera de «Run», o contundente hip-hop disfarçado de «Bow» (para quando uma colaboração Zeal & Ardor / dälek?), ou o dinamismo melódico de «Church Burns» (nunca uma linha demolidora como “and the church burns” foi cantada com tanta candura, dando largas à famosa citação do Tom Waits, “I like beautiful melodies telling me terrible things“), só para pegar em algumas favoritas, até dão a entender um álbum all over the place. Só que não, no fim tudo faz sentido e até soa extraordinariamente coeso. E aí é que reside o génio.
Conceptualmente, como o Manuel também explicou ao Pires (a sério, a entrevista é muito boa, vão lá ler se ainda não tiveram oportunidade) voltámos ao trajecto de «Devil Is Fine» e «Stranger Fruit», concluindo aliás uma trilogia narrativa. Para os que ficaram incomodados com a abordagem lírica absolutamente directa de «Wake Of A Nation», o EP do ano passado de reacção aos acontecimentos à volta do assassinato de George Floyd pela polícia de Dallas, percebam que não só esse EP foi uma reacção imediata e “das tripas”, mas que a única diferença para aquilo de que os Zeal & Ardor sempre trataram é a camada de alegoria que o habitualmente subtil Manuel mete, e muito bem, nos álbuns, e que volta a fazê-lo com mestria aqui, ao ponto de introduzir um wink wink delicioso, numa referência Wagneriana no tema (parcialmente) em alemão «Götterdämerung». Interpretem este álbum ao nível que queiram (é para isso que a alegoria serve), mas o que resta, seja para quem for, é um conjunto incrível de canções extremas, catchy, profundas e com um apelo irresistível de one more play. Afinal, como o próprio Manuel disse numa entrevista recente a uma revista britânica conduzida aqui por yours truly, “if you have the best message in the world, but it’s in a bad song, no one will give a shit.” Felizmente, bad songs por aqui, nem vê-las. [9]