TILL LINDEMANN

TILL LINDEMANN + AESTHETIC PERFECTION @ MEO Arena, Lisboa | 17.10.2025 [reportagem]

Lisboa recebeu o lado mais visceral e teatral de TILL LINDEMANN num concerto onde música, corpo e imagem formaram um único organismo, e em que cada canção se transforma numa instalação “performativa” carregada de simbolismo.

Vamos tirar de imediato o elefante da sala: ver um espectáculo de TILL LINDEMANN não é, de todo, ver um espectáculo dos RAMMSTEIN. Ainda assim, a expectativa era, convenhamos, grande – entre os afectos e, certamente, também entre incautos (leia-se os que não viram a actuação no EVILLIVƎ FESTIVAL). Para estes últimos, qualquer tentativa de antecipar o que TILL LINDEMANN apresentaria na MEO Arena, em Lisboa, acabaria sempre condenada ao fracasso.

Não porque o público desconhecesse a reputação do cantor dos RAMMSTEIN, mas porque a actuação que trouxe agora em nome próprio a Lisboa afirmou-se ainda mais crua, mais explícita, mais experimental e, sobretudo, mais íntima na sua frontalidade. O que se viu ontem à noite foi um dos espetáculos mais desconcertantes, imersos em teatralidade sombria e visualmente provocadores que recebemos em muitos anos.

LINDEMANN, figura central dos industrialistas berlineneses, apresentou finalmente num palco português a produção completa da sua carreira a solo — um organismo artístico autónomo, pensado ao pormenor para funcionar como choque, como sátira, como pornografia simbólica. A arena do Parque das Nações, composta exclusivamente por maiores de 18 anos (será que não vêm pior na internet?), tornou-se cenário de um laboratório “performativo”, onde a imagem, mais ainda que a música, ditou o ritmo emocional da noite.

Para esta reportagem ser uma “típica review”, o espectáculo teria de ser um “típico concerto”. Não foi. Nada aqui obedece à lógica habitual: a carreira a solo de LINDEMANN, iniciada em parceria com o Peter Tägtgren e posteriormente continuada apenas sob o seu nome, tem-se construido sobre um repertório em que letras, performance e conceito são inseparáveis — e, acima de tudo, profundamente adultos.

Se nos RAMMSTEIN o tabuleiro já é provocatório por natureza, aqui o cantor opta por virar o espelho directamente para o seu lado mais kinky (um kink tão kinky que até já o meteu em trabalhos). Talvez não para escandalizar de forma gratuita, como se ouviu ali mesmo ao nosso lado durante a noite, mas para dizer abertamente: “estes pensamentos existem — e eu estou apenas a articulá-los”.

Fetiches, gula, corpos exagerados, fragilidade humana, desencanto e incapacidade emocional: tudo aparece filtrado por uma dose muito própria de humor negro, crítica social e um sentido teatral que combina o grotesco com o sublime. E a MEO Arena assistiu a tudo isso com uma mistura de fascínio, riso cúmplice e um desassombro total.

A noite na MEO Arena começou com AESTHETIC PERFECTION, projecto norte-americano de Daniel Graves, cuja estética electrónica sombria e provocadora se revelou uma escolha acertada para preparar terreno antes da chegada de TILL LINDEMANN. Longe de serem apenas uma “banda de aquecimento” convencional, surgiram em palco como uma extensão conceptual do espectáculo principal, reforçando a ideia de que a noite tinha sido desenhada como uma viagem progressiva rumo ao descontrolo cénico.

Logo desde o primeiro tema, os AESTHETIC PERFECTION mostraram porque continuam a ser um dos nomes mais relevantes do industrial moderno: uma sonoridade ora pujante, ora orelhuda, que encaixa de forma particularmente conveniente no actual revival do nu-metal, mas com uma sofisticação electrónica que os distancia das fórmulas mais óbvias. O resultado foi um set que equilibrou doses de agressividade e acessibilidade, alternando batidas pesadas, sintetizadores abrasivos e refrões capazes de fixar a atenção até de quem nunca tinha ouvido falar deles.

O ambiente visual foi igualmente estratégico: iluminação mínima, dominada por tons vermelhos e umas sombras bem densas, movimentos coreografados e quase mecânicos por parte de Daniel Graves, que surgia como uma figura algo ambígua — parte performer, parte maestro de um ritual digital. A arena, com gente ainda a chegar, reagiu com curiosidade crescente. Verdade seja dita, não houve grandes explosões de entusiasmo, mas houve uma atenção absoluta.

No final, os AESTHETIC PERFECTION conseguiram aquilo que poucas bandas de abertura alcançam num recinto da dimensão da MEO Arena: moldar o estado de espírito da sala, prepará-la psicologicamente para algo maior. Quando as últimas batidas electrónicas se dissolveram e o palco mergulhou de novo em escuridão, era evidente que a banda tinha cumprido o seu papel com eficácia. Não vieram “aquecer o público”; vieram afiná-lo. Criaram tensão. Criaram expectativa. E deixaram a sala predisposta para acolher, sem filtros nem salvaguardas, o espetáculo provocador que se seguiria.

Verdade seja dita, a estranheza começou antes sequer de TILL LINDEMANN surgir em palco. Depois do changeover, a MEO Arena mergulhou num breu espesso a partir do momento em que as luzes se apagaram e a «Meine Welt» ecoou pelas colunas de som, num crescendo que parecia anunciar uma invasão sensorial. Os primeiros sinais visuais surgiramm desde logo como presságios: focos brancos intermitentes, quase cirúrgicos, atravessaram a escuridão como lâminas.

E, assim que uma monumental cortina branca com letras negras se desprende e cai, revelando o palco por completo, instalou-se a histeria dos telefones em ao alto — a reacção ao choque que, de resto, será a constante narrativa da noite.

A «Fat» inaugurou os procedimentos com uma composição cénica que parecia saída de uma instalação de arte provocatória: duas bailarinas surgem em palco como “freiras” barrocas, movendo-se com uma lentidão quase ritualizada, até revelarem os fatos acolchoados que distorcem as proporções dos seus corpos. O grotesco é abraçado como estética — e percebe-se imediatamente que o conceito de beleza não tem aqui espaço para purismos. Desde cedo, a tela LED gigante ao fundo do palco revela-se a peça central de toda a experiência. Não é “decoração”: é o segundo narrador do espectáculo.

Ainda durante esse que foi o primeiro tema do alinhamento, figuras anónimas, aumentadas digitalmente, multiplicam-se num loop visual que mistura humor, desconforto e uma aguçada dose de sátira social. A sincronização entre o que se vê no ecrã e o que acontece no palco é milimétrica, quase industrial, como se fosse o próprio ADN de LINDEMANN convertido em luz.

A partir daqui, nada permanece fixo: plataformas elevatórias surgem e desaparecem no meio dos temas, e vão criando diferentes níveis de acção. Em vários momentos do concerto, as bailarinas são erguidas muito acima do palco, pairando sobre a multidão como figuras litúrgicas de um culto libertino. Mais tarde, será a vez da guitarrista Kristin Kaminski e da teclista tomarem o palco superior, iluminadas por feixes estreitos que lhes dão um contorno majestoso.

A bateria de Joseph Letz sobe e desce como se estivesse a respirar. A mobilidade do palco transforma cada tema numa mini-performance própria, com personalidade estética distinta. E o concerto avançava com «Und Die Engel Singen», um dos momentos que mais se aproximou do universo sonoro da banda-mãe, mergulhado numa iluminação prateada que varreu a plateia com precisão mecânica. «Schweiss» e «Altes Fleisch» reforçaram a temática da decadência física e do envelhecimento — e, mesmo sem explicitar tudo, as imagens projectadas no ecrã deixavam muito pouco espaço para inocência.

No entanto, foi com «Golden Shower» que a MEO Arena percebeu que LINDEMANN não ia recuar um centímetro. No ecrã, o vídeo de uma mulher filmada da cintura para baixo — sem roupa — avançava sem filtros. Entre essas imagens, um balde com o logótipo do músico deixava cair um líquido dourado. Por esta altura, a plateia oscilava entre o riso, o choque e a cumplicidade, mas ninguém desviava o olhar. Quando Lindemann cantou “from your pretty…”, deixou o público completar o verso com a palavra iniciada por C mais ordinária do inglês — um uníssono que fez a sala estremecer.

Durante a «Allesfresser» houve a já tradicional “distribuição” de tartes aos crentes, uma manobra que só seria superada já no encore, com «Fish On», quando o Sr. Lindemann e dois ajudantes a atirarem peixes (a sério) para a multidão

Se tudo isto soa a exagero, é porque sim, é um bocado. O TILL LINDEMANN é dado a alguns exageros e os seus concertos são, efectivamente, um reflexo disso. Ainda assim, há uma linha de conceito, narrativa e, sobretudo, estética, a sustentar aquilo que vimos na MEO Arena. As imagens, por mais gráficas, NSFW ou desconfortáveis que sejam, estão sempre integradas num discurso artístico que trata o corpo como um símbolo – e o desejo como matéria-prima.

Além disso, também houve instantes de contraste. A «Tanzlehrerin», com o seu andamento de valsa sombria, deu origem a um dos momentos mais belos da noite, com uma das bailarinas a dançar sozinha no topo de uma plataforma elevada, sob um foco único. Já «Blut» mergulhou a sala, que estava a 1/3 da capacidade, num proverbial banho de luz vermelha, criando uma atmosfera quase sacra, onde a violência sugerida na letra se transformou em pura composição visual. E claro: «Platz Eins», com luzes de discoteca e TILL LINDEMANN a percorrer a plateia numa bolha de plástico móvel. A coisa elevou-se a território do insólito. Lisboa rendeu-se sem reservas.

Após «Skills In Pills», «Du Hast Kein Herz» e um alinhamento que parecia não querer perder intensidade, o encore incluiu «Übers Meer», «Knebel», a já mencionada «Fish On», «Ich Hasse Kinder» — esta última cantada em uníssono por uma sala inteira ainda carregada de energia e, para terminar, a «Home Sweet Home» (em versão gravada), que encerrou a noite numa nota quase contemplativa. Foi neste momento que Lindemann falou verdadeiramente ao público: emocionado, agradeceu aos presentes na MEO Arena com aparente sinceridade — um contraste marcante com o caos controlado de todo o espectáculo.

ALINHAMENTO:
Meine Welt (intro) | 01. Fat | 02. Und Die Engel Singen | 03. Schweiss | 04. Altes Fleisch | 05. Golden Shower | 06. Sport Frei | 07. Tanzlehrerin | 08. Blut | 09. Allesfresser | 10. Prostitution | 11. Praise Abort | 12. Platz Eins | 13. Du Hast Kein Herz | 14. Skills In Pills | Encore: 15. Übers Meer | 16. Knebel (excerto) | 17, Fish On | 18. Ich Hasse Kinder | Home Sweet Home (outro)