A integração do ChatGPT no SPOTIFY promete conversas inteligentes — mas levanta dúvidas sobre privacidade, criatividade e o papel do humano na curadoria musical.
Durante décadas, descobrir música foi um acto de partilha, até de acaso e curiosidade. Agora, o Spotify quer que a inteligência artificial assuma esse papel — e fá-lo com a voz do ChatGPT, o famoso modelo de linguagem da OpenAI, que a partir deste mês passa a integrar-se directamente na plataforma. A nova funcionalidade permite que utilizadores Premium e Free liguem as suas contas ao ‘chatbot’ para receber recomendações personalizadas de músicas, playlists, álbuns e podcasts.
A empresa criada por Daniel Ek, o tal que agora investe também na indústria de armamento, apresenta a parceria como um passo natural rumo a uma experiência “mais inteligente” e “mais próxima do utilizador”. Mas será também um passo em direcção à automatização total da descoberta musical?
O funcionamento é, aparentemente, simples: o ChatGPT responderá a comandos como “Faz uma playlist com artistas latinos que ouço frequentemente” ou “Há podcasts que recomendes sobre ciência e inovação?”, ajustando as sugestões aos gostos e hábitos de escuta do utilizador. A promessa é de uma interacção um pouco mais natural, em que o utilizador fala com o sistema como falaria com um amigo de confiança — um “amigo” que, neste caso, conhece o teu histórico de audições ao detalhe.
O Spotify garante que a integração é opcional e que “nenhum conteúdo de áudio ou vídeo será partilhado com a OpenAI para fins de treino”. Ainda assim, a preocupação é legítima: o uso de dados pessoais ainda é o ponto mais sensível na relação entre utilizadores e plataformas digitais. Pese isso, a ideia de termos um assistente conversacional a gerir as nossas preferências sonoras deixa no ar uma questão mais ampla — estamos a personalizar a experiência musical ou só a reforçar o que o algoritmo já sabe sobre nós?
A questão não é de resposta simples, até porque a integração com a OpenAI é, na verdade, só o culminar de uma tendência que o Spotify tem cultivado durante quase uma década inteira. Desde o lançamento da playlist “Discover Weekly”, em 2015, a empresa tem apostado na promessa de antecipar os gostos da sua base de utilizadores tendo por guia os padrões de comportamento. O ChatGPT representa a versão conversacional desse mesmo modelo: em vez do algoritmo decidir por nós, passamos a dialogar com ele — mas o resultado final é o mesmo, uma filtragem automatizada que limita, em certa medida, o espaço para o imprevisto.
Para Sten Garmark, vice-presidente sénior e director global de experiência do consumidor do Spotify, o objectivo é bem claro: “A visão do Spotify sempre foi estar presente em todo o lado onde o utilizador está. Ao levar o Spotify para dentro do ChatGPT, criamos uma nova forma poderosa de os fãs se ligarem com os artistas e criadores de que mais gostam.” Mas se tudo se torna previsível, o que resta da descoberta? À medida que a IA afina as nossas preferências, reduz-se também o risco — e o encanto — de ouvir algo inesperado.
E sim, a personalização extrema pode acabar por transformar a experiência musical num espelho do que já somos, em vez de uma janela para aquilo de que poderíamos vir ainda a gostar. A ironia é que esta aposta em IA ocorre no mesmo momento em que o Spotify tenta distanciar-se dos abusos tecnológicos na criação musical. A empresa removeu recentemente 75 milhões de temas gerados por bots e também fez questão de implementar novas políticas para combater imitadores e “músicos fantasmas”.
A mensagem, a esse nível, é de vigilância ética — mas a convivência entre o combate à IA criativa e esta integração de IA curatorial expõe uma contradição evidente: ao mesmo tempo que o Spotify parece estar apostado em eliminar canções feitas por máquinas, entrega à máquina o poder de decidir quais são os artistas que ouvimos. Recorde-se que, antes desta parceria, a plataforma já tinha experimentado o uso de inteligência artificial ao unir-se à ElevenLabs para criar áudio-livros narrados por vozes sintéticas.
Em paralelo, o Spotify lançou o aguardado áudio hi-fidelity, agora disponível em mais de 50 mercados e sem custo adicional para os subscritores Premium. Uma conquista técnica significativa, sem dúvida, mas que também contrasta com a crescente automatização da experiência. O som é cada vez mais puro, mas a experiência tende a tornar-se menos espontânea. O padrão é claro: a IA está a infiltrar-se em todas as camadas do ecossistema Spotify — desde a narração à recomendação, da mediação à curadoria.
Num mundo em que a tecnologia promete conhecer-nos melhor que nós próprios, a linha que separada a conveniência e controlo torna-se cada vez mais ténue. A integração com o ChatGPT não é apenas uma inovação funcional — é um marco simbólico de como a escuta musical já se tornou uma interação entre humanos e algoritmos. E talvez seja precisamente aqui que reside o dilema contemporâneo da música digital: quanto mais personalizada a experiência, menos espaço há para o acaso, para o erro, e para a descoberta.















