NILE

NILE + HIDEOUS DIVINITY + INTREPID + MONASTERY @ RCA Club, Lisboa | 20.09.2024 [reportagem]

Os deuses podem sempre tentar impor-nos as suas vontades, mas, em Lisboa, foram os NILE que impuseram a sua brutalidade com uma facilidade só ao alcance de veteranos sempre prontos a enfrentar mais uma batalha.

No sempre em evolução reino do death metal, os NILE são como um daqueles aterradores vermes de areia do Dune, mas transladados para o Antigo Egipto. Ao longo das últimas três décadas, a banda norte-americana liderada pelo guitarrista Karl Sanders esculpiu uma trincheira abominável de obsidiana através das quentes e áridas areias da brutalidade genérica, enquanto, simultaneamente, tratou de elevar de uma forma muito consistente a fasquia em termos de destreza técnica e de poder atmosférico. Resultado: mais ninguém soa como os NILE — e seria tolo tentar sequer imitá-los.

Ora bem, o décimo álbum da banda, «The Underworld Awaits Us All», só veio reforçar esse ponto — e com mais vigor e veneno que nunca. Cinco longos anos desde «Vile Nilotic Rites», de 2019, que por sua vez surgiu quatro anos após «What Should Not Be Unearthed», de 2015, por esta altura já se percebeu que os NILE não lançam música nova com muita frequência ou “por dá cá aquela palha” e, talvez por isso, este mais recente LP, lançado no passado dia 23 de Agosto, acabou por afirmar-se mesmo como um dos maiores acontecimentos deste ano nos círculos de death metal.

Com 54 minutos de música nova e dois novos elementos na banda para apresentar ao público, Dan Vadim Von e Zach Jeter, «The Underworld Awaits Us All» marcou um regresso estrondoso dos NILE, e o quarteto fez sentir todo o seu poderio com uma força avassaladora nesta passagem da Underworld Tour 2024 por Lisboa. Já lá vamos, no entanto. Quando esta digressão foi originalmente anunciada, o Karl Sanders tinha prometido, todo entusiasmado, “metal com fartura” e, de facto, o que não faltou foi metal numa sexta-feira em que o RCA Club registou lotação quase esgotada e público estava mais que pronto para assistir a uma aula magistral em competência técnica.

A abrir o alinhamento internacional de quatro bandas, tivemos então os húngaros MONASTERY, que, verdade seja dita, não deixaram grande memória. Infelizmente, nuestros hermanos acabam por não ser bons nem maus, o que, sobretudo num espectro tão populoso como o do death metal é hoje em dia, revela-se um enorme problema. Nesse sentido, os INTREPID acabaram por afirmar-se como a surpresa da noite. Vindos directamente da Estónia, foram, simultaneamente, a banda com elementos mais jovens mas também a mais old school da noite.

Com o seu som inspirado nos 90s, que tanto faz lembrar os clássicos da Florida como os Decapitated, quase nos fizeram sentir jovens de novo, enquanto evocaram a atmosfera sombria e fétida de outros tempos. E sim, é certo que não estão aqui para reinventar a roda, muito longe disso, mas o que fazem está tão bem-feito, com tanta paixão e de forma tão convincente, que a derivação acaba por importar pouco.

Riffs lentos e pesados à Morbid Angel criam uma atmosfera densa sobre a plateia, continuando através das novidades «I Am The Vile» e «Opiated Consumption», antes de fecharem um concerto que só ficou aquém apenas pela curta duração com mais um inédito, com o título «Overthrone», muito pesado em blastbeats e apoiada num groove avassalador.

Retornando a uma localização bem mais central na Europa, de seguida subiram ao palco os death metallers italianos HIDEOUS DIVINITY, para aquela que foi a sua segunda actuação de 2024 no nosso país, após uma passagem pelo festival Laurus Nobilis Music, em Famalicão. Já com quase duas décadas de carreira, a banda oferece uma abordagem ligeiramente diferente, mas também algo genérica, ao figurino do death metal.

O uso de ritmos intermitentes e mudanças de tempo confere à música uma sensação desconcertante, embora o vocalista Enrico lidere a insanidade da sua performance com a confiança de um cirurgião. E, mesmo evitando o deathcore, a técnica alia-se com a pura brutalidade, mas a linha é exactamente a mesma de bandas como os Cattle Decapitation, que, ainda assim, conseguem fazer isto tudo de forma menos estéril.

Permitam um aparte, e a pessoalização deste texto, mas, corria o ano de 2003, e vi os NILE a tocarem no Wacken Open Air, ainda com o sol a raiar e rodeado de milhares de pessoas. Pese o “espectáculo”, nessa ocasião perdeu-se muito do impacto que tiveram na passada sexta-feira na sala de Alvalade, frente a umas centenas de headbangers a suarem em bica, e a absorverem em pleno cada segundo da “jarda”. É verdade também que, nas últimas duas décadas, o death metal tem explorado todo o tipo de caminhos estranhos, mas os NILE têm mantido o seu rumo desde a criação, venham as tendências que vierem.

A sua abordagem técnica e brutal ao género tem sido sempre tão feroz quanto possível e, a espaços, até memorável, em parte devido à mitologia que envolve a sua música: os textos sagrados e o panteão do antigo Egipto. Desde «Vile Nilotic Rites» muito mudou no mundo dos NILE, incluindo a formação em contante rotação da banda e até mesmo a editora responsável pelo lançamento da sua música, mas como o mais recente álbum já tinha provado, uma coisa que não mudou foi a força da identidade que o Sr. Kyle Sanders criou para esta banda — e o quão grandiosa pode ser a sua música. No pequeno palco do RCA Club, os quatro músicos mostram-se inteligentes, dinâmicos e completamente consistentes.

Com Sanders à esquerda do palco, permitindo que o centro fosse ocupado pelo baixista/vocalista Dan Vadim Von, enquanto Zach Jeter, na guitarra e na voz de apoio, se encontra à direita, desde o início, com a já habitual abertura a cargo de «Sacrifice Unto Sebek», os NILE mostram-se coesos e muito focados, mas também desenfreados, frenéticos e transbordantes de energia. Seguiu-se uma rápida e brutal «Defiling The Gates Of Ishtar», repleta de explosões curtas e técnicas. E sim, isto soa a quase a jazz, mas passado pelo filtro da música extrema, com vários canhões musicais todos a dispararem ao mesmo tempo, mas sem que o grupo alguma vez soe desregrado ou desconjuntado.

A isso muito ajuda, claro, que as actuações individuais dos músicos — importa referir que o baterista de longa data George Kollias, imponente atrás do seu kit, é todo um espectáculo dentro do espectáculo — sejam imaculadas, com os novos membros a entregarem o material com uma perícia e uma ferocidade impressionantes. «To Strike With Secret Fang», do disco deste ano, apresentou um solo épico que se elevou acima da bateria destrutiva de Kollias com uma nitidez apreciável, antecedendo «Kafir!» que, com o clamor de “There is no God but God / There is no God but God / There is no God but the one true God / There is no God but the hidden God” se afirma como um clássico do death metal ainda mesmo antes dos riffs chegarem.

Sem grandes paragens pelo meio, «Call To Destruction» deu bom espaço a Vadim Von para brilhar no seu baixo, o tema-título de «Vile Nilotic Rites» diminuiu o ritmo, mas intensificou a atmosfera, e, dúvidas restassem, «Stelae Of Vultures», o segundo de apenas dois temas de «The Underworld Awaits Us All» que incluíram num total de doze tocados, demonstrou uma vez mais que a idade não amoleceu em nada o sentido de carnificina bruta que sempre caracterizou os NILE.

«In The Name Of Amun» e «Lashed To The Slave Stick», back to back, levaram-nos à única visita ao terceiro álbum da banda, para logo a seguir sermos flagelados por mais indiscutível clássico, desta vez «Sarcophagus», de «In Their Darkened Shrines», com as suas atmosféricas envolventes, que marcaram aquilo que foi início do segmento final do espectáculo. Após «Long Shadows Of Dread», e em apoteose, o quarteto atirarou-se a «Annihilation Of The Wicked», com a sua intensidade a escorregar lentamente, e à épica «Black Seeds Of Vengeance», que resultou num proverbial monstro de death metal demolidor.

A dominância persistente dos NILE ao longo das décadas, aparentemente a tornar-se mais forte com a idade, é algo que precisa, eventualmente, de ser estudado. O «The Underworld Awaits Us All», e este concerto, foram mais duas entradas profundamente fortes num reinado que dura há décadas e num corpo de trabalho que parece imitar de perto a natureza cíclica da vida e da morte.