MOONSPELL: “THE ETERNAL SPECTATOR GOES TO AMERICA”, por Fernando Ribeiro [exclusivo]

Não sei se os estimados leitores viram ou se apaixonaram, em algum momento, por um filme de seu nome original “The Nightmare Before Christmas”, do célebre Tim Burton. Traduzido, polidamente, em português para o “Estranho Mundo de Jack”, trata-se de uma obra-prima da animação, com a fluência de um musical superiormente dirigido e interpretado por Danny Elfman, possuidor de uma voz e capacidade narrativa arrepiante. A história contada é por demais fabulosa, num limbo em que se confundem o imaginário da Noite das Bruxas e do mais obscurantista espírito de Natal. A respeitar o título e se se tivesse optado pela tradução directa — o filme chamar-se-ia, em português, o “Pesadelo Antes Do Natal”. E seria, o titulo, espelho e lema perfeito para o que se passou e se dimensionou na digressão última que juntou os MOONSPELL e os LACUNA COIL por terras norte-americanas.

Inveja-se o glamour e as lendas da trilogia sexo, drogas e rock’n’roll.

Para ser absolutamente honesto, este título já tinha sido utilizado há um ano atrás pelos IN FLAMES, que — em digressão — mais ou menos por essa altura [Dezembro de 2000], tinham vivido circunstâncias muito parecidas e macabramente azaradas, ficando no ar um travo de maldição. Que nos parece romântico agora, sentados no desconforto das nossas suburbanas casas, mas que, on location, não foi, de todo agradável ou memorável. Como tal, os apreciadores do filme lembraram-se do nome quando viram passar o atrelado com todo o seu material à frente do próprio autocarro, indo embater num raid da auto-estrada. Fez escola o nome, tal como o azar cósmico e terrível, do cósmico e terrível mês de Dezembro. Sendo o Spectator mais uma presunção filosófica, talvez narrativa, aqui e ali, não me vou cingir ao mero reportar do que se passou minuto-a-minuto, pois muitos houve que se quiseram velozes e imperceptíveis. Comecemos por uma desmistificação: toda a gente sabe que tocar ao vivo, essencialmente em territórios em que nunca se sonhou sequer marcar presença turística, é uma das forças dos MOONSPELL e tudo o que somos — de bom e de mau — devemo-lo à intrigante e sugadora experiência da Estrada. Sabe-se do trabalho envolvido e apurado, moroso, com problemas dimensionáveis até ao ridículo e ao desesperante. Imagina-se ainda o prazer de viajar e — ao chegar a noite — viajar no palco, com as muitas almas que por ai se convertem, com ou sem permissão. Inveja-se o glamour e as lendas da trilogia sexo, drogas e rock’n’roll. Alia-se o defeito tipicamente português de exagerar as recompensas financeiras de outrem, principalmente porque a nossa nunca é suficiente, mas sim pálida perante o mérito. Justificado ou injustificado.

Os MOONSPELL não vivem da música. Sobrevivem do seu extremo trabalho nesta.

Percorra-se agora a curva descendente. Encontremo-nos, por um momento, com as burocracias dos vistos, a humildade forçada do sorriso ovino nos check-ins dos aeroportos — para não se reparar no peso e formas dos nossos incompreendidos instrumentos de trabalho –, nas noites perdidas em cálculos dolorosos, nas repetições infindáveis do alinhamento, etc… Problemas típicos da nossa dimensão, tantas vezes inflacionada no demérito artístico, mas empolada na recompense financeira. Pois é, numa nota breve, os MOONSPELL não vivem da música. Sobrevivem do seu extremo trabalho nesta. Resta a criação e comunicação, impagáveis e incalculáveis. Mas estes problemas profundos são nossos. apetece dizê-los hoje na voz do pesadelo antes do Natal. Uma palavra tem que ser dita acerca do contexto em que a nossa digressão foi preparada e efectivada. A Century Media USA propôs começarmos a explorar, em digressão, o álbum «Darkness And Hope» pelos Estados Unidos. Para isso houve um esforço concertado de promoção, de modo a seguir os bons indicativos deixados em experiências prévias captadas em anos anteriores. Assim, mal o disco foi editado do outro lado do Atlântico a digressão começou a ser marcada. O primeiro conjunto de datas foi agendado para Setembro. Depois Novembro. Finalmente ficou para Dezembro.

A nossa decisão foi a de jogar outro jogo que não o de ficar em casa, temendo o latente e o invisível.

Claro está, o acontecimento infame do ataque terrorista de 11 de Setembro mudou tudo isto. Aliás, afectou qualquer tipo de plano, com a feição de máximo ou mínimo. Além do inevitável baque de fragilidade que assolou o mundo, revoltou os descrentes e continua a escavar o abismo, por isso os nossos planos práticos foram também eles mudados. E que importantes — egoisticamente sim! — eles eram para uma banda que, com cada álbum, tem que se provar aos seus exigentes receptores. Maldição ou prestigio, seja o que for, é sempre um problema a resolver. A primeira sugestão foi a de cancelar. Tudo estava confuso, perigoso até, e o nosso manager sugeriu esta opção. Todavia a sobrevivência falou mais alto, mesmo com a paranoia de Morte rápida e hecatombe que se abateu sobre todos, mesmo sobre os que não a admitem. A nossa decisão foi a de jogar outro jogo que não o de ficar em casa, temendo o latente e o invisível. Daí termos insistido em manter o plano, na medida do possível. E fomos. E até voltámos! Com este espírito, embarcámos em direcção ao aeroporto de Nova Iorque, sob vigilância tensa mas extremamente subtil, fazendo uma viagem de nervosa miudinho, bem controlado pelo ambiente casual do staff da Continental e do seu in-flight entertainment, que incluía até para meu deleite um episódio do mítico e saudoso “Seinfeld”. Bom vinho tinto, também. Californiano, acrescente-se. Tudo nos pareceu normal durante o voo e a chegada. Tudo. A costumeira apresentação aos desconhecidos que iriam partilhar o nosso espaço, vida e oxigénio. A rotineira ida ao dinner mais gorduroso, ritual de adaptação ao estilo veloz de vida e morte que a América do Norte preciosamente possui. Tudo, até o facto premonitório de os LACUNA COIL terem perdido o voo de ligação em Paris e termos esperado mais de cinco horas por eles. Seria só o primeiro degrau da escadaria azarada que iríamos subir.

Uma ambiguidade bem típica de uma cultura nova, com tendências comportamentais explicáveis pelo excesso da juventude, mas nem sempre desculpáveis.

Antes de passarmos a apresentação dos azares e glórias desta pequena digressão vamos dedicar um pequeno parágrafo a avaliar das consequências do ataque de 11 de Setembro. A consequência mais visível é o da inflação do patriotismo e da sua paralela paranoia um pouco por todo o lado. Arriscamo-nos a dizer que 90% dos carros e casas estavam ornamentadas, vestidas de stars and stripes, a famosa bandeira norte-americana que esgotou rapidamente em todos os sítios, alguns bem insólitos, em que se vendiam. Durante a tour, encontramos outras provas desta idolatria, consequência directa da Guerra, sem qualquer tipo de ambiente diga-se, que os Estados Unidos vivem – ou melhor, procuram viver — pelo toque de absurdo, da invisibilidade do inimigo que se procura e se pode encontrar em todo o lado. Se bem que para nós, alheios uma vez mais — na medida do possível a guerra e a crise — tudo isto nos pareça pintado de exagero, o facto é que se verificava por toda a parte e em todos os olhos se via um sentimento de esperança e de vingança. Uma ambiguidade bem típica de uma cultura nova, com tendências comportamentais explicáveis pelo excesso da juventude, mas nem sempre desculpáveis. Tal como o muito recorrente preconceito Europeu e de todo o mundo, nesse sentido, fazendo com que muitas vezes a inércia dos próprios países se substancie na facilidade com que se aponta o dedo ao fácil bode expiatório que foi muitas vezes são os Estados Unidos. Em todo o caso, estas são considerações que merecem outro espaço e outro estilo de discussão, fundamentadas na convicção pura de muitas vezes, uma grande desculpa política para a falta de coragem em que, por muito utópico que isto soe, a dependência económico/militar/social é, assumirmos e recuperarmos o nosso território e importância. Veja-se onde chegou Portugal, por exemplo.

Uma espécie de formigueiro de seu tom atómico e obscuro com a fauna nocturna da cidade que nunca dorme.

A digressão propriamente dita começou em Philadelphia, no excelente Trocadero, onde à boa maneira americana, se juntaram nomes como ENSLAVED e DEMONIC ao cartaz original, provocando um cansaço no público, que a alguns já não permitiu assistir ao nosso concerto. A partir da terceira data, no famoso L’Amour, em Brooklyn, Nova Iorque, assistiu-se a, quanto a nós, um dos melhores concertos de toda a digressão, provando que o following dos MOONSPELL cresceu em solidez desde a última vez que por ali estivemos. Nesse dia, toda a gente despertou bem cedo para tentar ver algo do impressionante Ground Zero. Todas as potenciais visitas ficaram desde logo frustradas, pois nesse dia todos os acessos ao local estavam cortados. Consolação da curiosidade macabra foi avistar o possível da janela suja do nosso autocarro, que, se por um lado foi insuficiente para aplacar o momento, não deixou de ter um toque impressionante. Descrever a enorme falha na silhueta de Mannhatan, como uma boca abissal privada da sua lingua e dentes frontais, com a visão, talvez imaginada, de um grande painel branco que se estendia de extremidades indefinidas da cratera, como lição não aprendida de Paz e do dispensável medo de Deus. Longe desta vista, bem no coração nova- iorquino, o L’amours recebia essa noite suada, uma verdadeira maratona de bandas, parecendo uma espécie de formigueiro de seu tom atómico e obscuro com a fauna nocturna da cidade que nunca dorme, fazendo jus ao frenesim da corrida entre palcos, resistindo até ao fim e tornando a vida dos Moonspell bem mais fácil que em outros sítios pela entrega elogiosa e voluntariosa. Tivemos a grande honra de receber a visita do nosso amigo e camarada Peter Steele, de humor negro apuradíssimo, língua afiada, chupando um lollipop de cereja, prometendo uma visita a Portugal e acima de tudo impressionando como sempre pela resposta bem armada, seu séquito feminino e a amizade genuína com que honra os MOONSPELL. Feitas as despedidas, ficou o convite de Steele para lhe telefonarmos “next time we are in town” para que nos possa levar a jantar genuína “american bad food“. Sem dúvida.

Os concertos canadianos, tão aguardados por bandas e público, eram agora uma miragem na neve e distância que nos separava.

No fim do concerto seguinte, em Worcester, perto de Boston, os vidros do nosso camarim começaram a dar o alarme para a tempestade de neve que se aproximava desde o início do dia, subtil mas perigosa. Sob ela começámos a viagem até ao Canadá, para os concertos seguintes em Toronto e Montreal. Cansados ainda da maratona nova-iorquina, todas as almas tiveram um merecido repouso até ao sinal de acordar, que seria dado pelo nosso tour manager de modo a acordarmos com um ar simpático o suficiente de modo a passarmos – com distinção e eficiência — a sempre terrível fronteira canadiana. Esse sinal, dado poucas horas depois, viria a ter o sabor amargo de uma revelação: a de que o nosso autocarro tinha partido a transmissão e que estávamos presos numa remota cidade em New Hampshire — chamada Concorde. Os concertos canadianos, tão aguardados por bandas e público, eram agora uma miragem na neve e distância que nos separava. Revoltados, conformados, desiludidos… enfim, vivendo agora em tempo real o pesadelo entramos num hotel colonial (que se dizia assombrado) e comemos num restaurante mexicano cujas salas eram celas, que se diziam assombradas mas cuja promessa de assombração nos parecia inofensiva perante o que nos tinha acabado de acontecer. Para não perder o dedo, os MOONSPELL fizeram algo de escandaloso e inédito: tocar um set de três musicas em acústico, num bar local, apropriadamente chamado Pannuci’s, numa noite de “open mic” sendo pagos em má cerveja americana e tortilla chips. Os locais agradeceram e até correu o boato, inacreditável, de que os SCORPIONS tinham descido à cidade.

As reacções e lotações ultrapassavam as nossas melhores, no nosso sombrio contexto, expectativas.

A partir daí tudo foi confuso, com mudanças quase diárias de casa/autocarro, com jogos de arrumação de material que tinham parecenças terríveis com o célebre jogo Tetris, muitas noites sem dormir, muita velocidade, com concertos pelo meio dos quais se destacam o de Illinois (Aurora, perto de Chicago) e o de Milwaukee, localidade onde se realiza o mais antigo festival de metal nos Estados Unidos. As reacções e lotações a esses espectáculos ultrapassavam as nossas melhores, no nosso sombrio contexto, expectativas. A partir desta data recebemos o nosso último autocarro, que nos acompanharia até ao fim desta jornada. Um autocarro que era uma verdadeira peça de museu, com um buraco a descoberto no porão, que provocava uma impressionante onda de frio quando em andamento. Resultado: um autocarro, galé, sob o qual o espectro da gripe desceu sem piedade para os seus ocupantes, que se entretinham e aqueciam muitas noites ao som do furioso metal americano, um slam dancing improvisado e o sempre bem-vindo Jack Daniels, como fornalha interna e absolutamente necessária. Este veículo, cujo peculiar condutor Romeo — um Steve McQueen, versão rock de bota, que se divertia a dar choques de 200.000 watts no seu grande volante de borracha — nos levou-nos então ao concerto final, em Los Angeles. Esgotado há algumas semanas, num sitio imundo chamado Fais-a-do-do, um restaurante vestido — nessa peculiar noite — de negro rock e gótico chique.

Vimos as pegadas dos famosos, as suas estrelas, o pedante bar Rainbow, a capitalista Universal Walk, mas sempre com a mente bem orientada para voltarmos ao nosso covil luso.

Para trás ficavam os sustos dos ingénuos espectadores de Minneapolis quando confrontados com um vertiginoso mosh pit durante a interpretação de «Firewalking», as casas de banho com o alvo Bin Laden no urinol (que resulta em pleno), a visita ao maior centro comercial do mundo [Mall Of America) — leia-se: uma colossal perda de tempo –, a paz de Denver e a sua fraca oxigenação, o pneu destruído no Nevada e os ilustres de S. Francisco e, por fim, a apoteose dental em Los Angeles, onde tive a oportunidade memorável de arrancar um dente duas horas antes do concerto. E só com 10% de anestesia, porque se tivesse levado a dose exacta não conseguiria articular palavra durante três a quatro horas. I left a bit of me in LA… Para lamber feridas e aguar azares, a Century Media levou-nos a passear na cidade onde tudo é maior e bem mais interessante nos filmes: sim, vimos as pegadas dos famosos, as suas estrelas, o pedante bar Rainbow, a capitalista Universal Walk, mas sempre com a mente bem orientada para voltarmos ao nosso covil luso onde, azarados mas seguros, preparávamos a viagem à Rússia, ex-inimigo virtual dos Estados Unidos. Ficamos obviamente com vontade de voltar, mas melhor protegidos e fornecidos de mezinhas, pulseiras, berloques, ou simplesmente pela convicção pura de que depois da conquista heroica que foi esta digressão, termos desenvolvido os anti-corpos necessários para tudo o que vier futuramente. E gozar francamente o que, para além dos pesadelos e sonhos, pode ser a melhor ocupação passional do mundo: ser um sobrevivente.

Este texto foi originalmente publicado na LOUD! #17, de Fevereiro 2002. Os MOONSPELL anunciaram esta semana um muito aguardado regresso aos palcos, para concertos em Castelo Branco (21 de Maio), Costa da Caparica (12 de Agosto) e Porto (30 de Setembro). Em 2002, a banda nacional vai andar em digressão pelo Reino Unido ao lado dos PARADISE LOST.