O mundo africano que o padre jesuíta Jerónimo Lobo viu no segundo quartel do século XVII alteava-se de complexidades dramáticas: só o facto de ele ter sido obrigado a mudar de nome para garantir a sobrevivência consiste num caveatcapaz de deixar qualquer um de sobressalto: «Recebi porem primeiro carta do Pe. Superior da Missão que mudasse o nome de Lobo en outro qualquer porque como todos os Abexins [Abissínios] tem sejão sinificativos e coaize todos santissemos, como Tenca Christos, Resureição de Christo, Bella Christos, comer de Christo, ettc.a preguntam loguo o nome de cada hum e sua sinificação ou que quer dizer o tal nome na sua lingoa; e como lobo seja o mesmo que gib [chacal] e este sinifique mil cousas más e infames, de sorte que nem ladrão, salteador, matador e trezentas outras couzas lhe escape, de tal maneira que quem chamar a outro gib, lobo, he obriguado a lhe pagar grave pena como se lhe disera huma grande afronta, se çoubesem que tinha eu o nome de gib, ou lobo, não só o estranharião e abuminarião mas cudarião que mo puzerão por alcunha por aver em mi os males que o dito nome sinifiqua, pello que me foi forçado muda-lo, entrando, outra vez n’aldea de Fermona [local onde os jesuítas tinham a sua casa-mãe] donde saira con nome mudado.»
Entrar na Etiópia da primeira metade de Seiscentos (sob criptónimo ou não) seria sempre ingressar num mundo em mudança geográfica no qual se produziam completas renovações sociais, políticas e comerciais. Assim, essa periférica manta territorial da África Oriental tornava-se duplamente estranha para um ocidental imbuído de concepções que, face a essas mutações, deixavam de fazer sentido. Não obstante, um elemento crucial mantinha-se ainda ancorado nas expectativas transferidas da Europa: a de que se tratava de uma terra, por excelência, transformadora. Esse peculiar tipo de modelamento mental provocado pelo convívio com o inesperado também era partilhado pelas populações locais, que olhavam para os europeus como reagentes que precipitavam a decomposição de tudo o que era tradicional – até mesmo daquilo que era natural, como se colhe do relato de Jerónimo Lobo, que nos conta como uma certa comunidade local olhava para os jesuítas como sendo entidades causadoras de misteriosas pragas de gafanhotos: «E como os dias forão muitos, en hum estando-sse confeçando huma pessoa con devação, afeito e satisfação minha, sabendo eu que era do lugar que estava en sima que tam mal nos recebeo [na comarca de Sire, perto de Fremona], lhe preguntei porque vinha agora e toda a mais gente da sua aldea con tanta vontade a se reduzir, recebendo-nos avia pouquo con tantas lagrimas e mostras de adverção? ao que nos respondeo que lhe tinhão dito seus frades e clérigos que tanto que nós entravamos en alguma terra a pregar, loguo nos seguia huma praga de gafanhotos que destruia aquella comarqua en sinal de ser falça a doutrina que pregavamos e querer Deos castigar por aquelle modo a terra que nos recebe, e como nos vião antrar na sua temião o castigo que loguo lhes avia de vir; mas vendo porem que este não vinha, avendo yá tanto dias que por ali andavamos, julgarão todos ser falço o que de nós se dizia, e como a doutrina que ensinavamos era da salvação a vinhão todos alegres a receber pezarosos de primeiro a engeitarem.»
Conclui-se que o mundo que Jerónimo Lobo viu foi, principalmente, um mundo em acelerada metamorfose. Poderá ser esta a chave para melhor desencriptar o porquê da insistência deste missionário em querer reproduzir em circunstâncias custosas os tropos da medicina ocidental, de estilo galénico, mesmo quando isso obrigava a atitudes arriscadas e potencialmente letíferas. Seria para ele um modo de agarrar-se ao que lhe era conhecido.
Observador cuidadoso e escritor de extraordinário poder evocativo, Jerónimo Lobo autorou um mais completos e mais bem escritos testemunhos etnográficos das realidades ultramarinas que a expansão portuguesa encontrou no segundo quartel do século XVII. Curiosamente, foi em França, no ano de 1728, que se imprimiu pela primeira vez o seu Itinerário, sob o título Voyage historique d’Abissinie; só tardiamente foi impresso em português, no ano de 1971, mas, antes disso, circulou em versões manuscritas, sendo a fonte principal da História geral da Ethiópia de Baltasar Teles (1660). No decurso das suas viagens periféricas, várias vezes este missionário se encontrou perto de transpor a porosa periferia que aparta a vida da morte – e quase sempre por culpa de doenças tropicais. Na ocasião mais dramática em que isso acontece, derruído por uma terrível febre e sem sangrador à vista que lhe ministre uma sangria à ocidental, Lobo dispõe-se em desespero a sangrar-se a si mesmo: «A [brutalidade] da terra contudo me não deixou ir a manos lavadas, como dizem, porque me carregou con huma valente febre de que me vi bem apertado. Medicos e mezinhas não nas avia nem mais alivio que o de hum negro abexi e tres portuguezes que ali estavão, ajuntando a isto muita dieta ou inedia, e a passiencia e confiança en Deos Nosso Senhor. Não deixei contudo de inquerir se avia alguem naquelle lugar quem sangrasse e quanto a tirar sangue em espesial de christanos não dovidava aver muitos, pois todos os moradores delles erão finos mouros de oficio, porem de barbeiro, que era o de que nesecitava, nenhum avia, obrigando-me esta necessidade aprender a me sangrar por min mesmo quando tivesse necessidade, que me aproveitou.»
Uma decisão não tomada levianamente, pois, em harmonia com a mentalidade moderna, uma sangria mal-executada incorreria em irreversíveis perigos metafísicos, daí a necessidade de contratar um sangrador experiente e autorizado – empreitada improvável nestes espaços ultramarinos. Todavia, no específico caso de Lobo, a falta de encontrar um sangrador que o operasse seria calamitosa, porque os membros do clero estavam proibidos de derramar sangue. Porém, Lobo não precisou de operar-se a si próprio, pois as gentes locais, in extremis, localizaram-lhe um velho mouro que identificaram como sendo capacitado para executar essa intervenção:
«Enculcarão-me porem hum que diserão aver n’aldea e supria o exercício de barbeiro ao qual ouve de me entregar qualquer que fosse mandando-o chamar. Entrou u offecial na caza em que eu jazia con os instrumentos seguintes pera aver de me sangrar: hum meo ladrilho na mão, huma faqua ferrugenta e mea carcumida con grandes boquas no gume e tres pontas de cornos de meo palmo cada huma. O mouro era velho, manquo, mesquinho [de baixa estatura] e andrajoso, torto de hum olho por sinal, e preguntei- lhe, vendo tal fantasma, que pretendia. Respondeu-me que tirar-me sangue, e na verdade ainda que os instrumentos erão tais quais eu pinto e piores, bastavão para o efeito.»
Lobo submeteu-se à sangria feita pelo velho: um mimetismo heterodoxo, uma adaptação inventada do que seria expectável numa cirurgia análoga operada por um sangrador europeu autorizado. Deixe-se, pois, a voz ímpar de Lobo fechar esta breve observação de um pequeno episódio de luta contra a doença e a morte em território ultramarino: «Mandou-me lansar de brusos e metendo na boca hum pedasinho de papel que pedio, descobrindo-me as costas me fixou nellas hum dos corninhos e chupando fortemente por ser furado pella ponta mais delgada, como offecial destro mo pregou e amarrou tão tezo como se fose huma ventosa de foguo e estopas, fazendo o mesmo aos outros dous con que fiquei com aquella armação nas costas tam tezos e direitos como se fosem ali nassidos. (…) Enquanto as cornias ventozas fazião seu officio de chamar sangue, se pos o meu barbeiro amolar a faqua no tijolo que pera isso o trazia dandi-lhe os fiios doses con que o doente não pudesse sentir tanto a dor do golpe, senão que como as boquas da faqua erão muitas e grandes, não as pode gastar ou tapar, ficando a faqua huma má e carcumida serra. Con ella se veo a min e tirando-me das costas os tres corninhos me deo en cada hum dos sinaes tres golpes ou sangraduras, as quais eu não lo senti pella grande dor que me cauzavão, mas ouvi pello ruido que fazião quando rasguavão ou serravão a carne. A segunda vez tornou a pôr os tres corninhos e chupar a fim de tirar o sangue, tapando-os loguo com a lingoa metendo-lhes o pesdasinho de papel que na boqua tinha. Desta maneira tirou e pos tantas vezes até que se deo por satisfeito do sangue que tinha tirado e eu muito mais por me ver livre de sua carnefecina e manos, nas quais ultimamente para amezinhar tudo pos hum pouco sebo cru e prantando-mo nas costas sobre as feridas que vertião ainda sangue, com a palma da mão tanto esfregou sobre as feridas que não só abrandou o cebo mas com elle as tapou, sentindo eu entanto hum aspero selicio nas costas que tal o reprezentavão a aspereza de suas manos pouco mestras (…)»
Práticas, atitudes e crenças postas em cotejo e em oposição em lugares onde o improviso e a imaginação são a única defesa contra o Desconhecido.