Marginália e Imaginário

MARGINÁLIA E IMAGINÁRIO: Um “suicídio surpreendente” por auto-crucificação

Em Veneza, na noite de 19 de Julho de 1805, um aprendiz de sapateiro chamado Mattio Lovat, de quarenta e quatro anos de idade, crucificou-se numa grande cruz de madeira que construiu para esse efeito com as tábuas da sua cama: de modo a mimetizar com fidelidade a Paixão de Cristo, infligiu um golpe de navalha no torso para simular a chaga perfurada pela lança de Longino e fincou na testa uma artesanal coroa de espinhos; em seguida, numa árdua e bizarra elaboração, defenestrou-se do terceiro andar do seu quarto da Calle delle Monache, no distrito de Cannaregio, já crucificado pelos pés e pela mão esquerda, ficando suspenso da janela graças a uma rede de sua invenção. Na manhã seguinte, os transeuntes apanharam um grande susto diante do insólito espectáculo proporcionado por Lovat, mas agiram de imediato para despregá-lo da cruz quando perceberam que estava vivo. Um dos indivíduos atraídos pela azáfama foi o médico Cesare Ruggieri, que examinou o auto-crucificado e o levou para a escola de cirurgia onde dava aulas; diagnosticando-o como perturbado, fez com que fosse admitido no asilo psiquiátrico da ilha de San Servolo — local onde, passados poucos meses, faleceu por culpa de complicações alheias às sequelas da auto-crucificação. Esse acto, aliás, foi classificado pelas autoridades venezianas como «um suicídio surpreendente». Mais surpreendente é ter-se descoberto que dois anos antes Lovat já tentara auto-crucificar-se — de facto, no barco que o levou a San Servolo terá dito «-Ainda me sinto infeliz.»

Segundo uma carta deixada por Lovat, pode dar-se crédito à intenção de suicídio — e à hipótese de que a auto-crucificação, além do significado religioso que teria para o próprio, também serviria, na sua perspectiva, de refrigério para o labéu do homicídio de si próprio. Porém, Ruggieri, no seu relato História da Crucificação (1806), duvida dessa intenção, porque Lovat não escolhera uma morte rápida: o seu desejo seria sofrer e tornar-se um mártir. Ora, nesse tempo o tema do suicídio centralizava de forma já secularizada as atenções dos físicos e dos causídicos; no mínimo desde que o escritor alemão Goethe publicara A Paixão do Jovem Werther (1774), um romance sobre um protagonista que se suicida com um tiro na cabeça por culpa de um amor não-correspondido; grande êxito de vendas, o livro inspirou a juventude masculina da época a vestir-se como a personagem titular e terá até provocado uma vaga de suicídios por imitação — fenómeno forense que ficou conhecido como Efeito Werther (sobre este macabro ascendente operado pelo texto de Goethe não existe certeza, mas a edição do livro foi proibida em alguns países).

Há precedentes da pirexia mística de Lovat no desempenho catártico de alguns adeptos parisienses do Convulsionismo, uma heresia jansenista, que, décadas antes, tentara o martírio da auto-crucificação, mas é crível que o aprendiz de sapateiro fique para a história como o primeiro auto-crucificado — por mais que a imprensa veneziana da época, sob o domínio napoleónico desde Março desse ano, tenha ignorado o caso, provavelmente com receio que provocasse tumultos de natureza religiosa num momento em que as autoridades francesas se esforçavam por rechaçar essa dimensão (por exemplo, com a extinção das ordens religiosas). Sobre este caso de Lovat, pode ler-se o estudo The Man Who Crucified Himself: Readings of a Medical Case in Nineteenth-Century Europe (Brill, 2020), de Maria Böhmer.

(Imagem: Wikimedia Commons.)