Em mais um MARGINÁLIA e IMAGINÁRIO, enfiamo-nos na máquina do tempo de volta a 1691 para recordar o insólito caso de um camponês acusado do delito de ilusão diabólica.
Em 1691, na antiga Livónia (região europeia do Mar Báltico), ocorreu uma das mais interessantes contendas judiciais, através de um julgamento que, inicialmente, parecia ser vulgaríssimo. Um camponês idoso, apelidado Velho Mateus, dirigiu-se certo dia ao tribunal para ser testemunha de acusação no julgamento de um maroto que andava a roubar igrejas; porém, um estalajadeiro que também fora arrolado como testemunha disse logo às autoridades que o velhote não tinha condições nenhumas para prestar juramento sobre os Evangelhos, porque toda a gente sabia que ele era um lobisomem e um apaniguado do diabo.
Perplexos, os magistrados perguntaram ao Velho Mateus se isso era verdade, ao que este respondeu afirmativamente: tinha sido lobisomem, mas deixara-se disso há vários anos. Assim, um banal julgamento de furto de igrejas transformou-se num insólito julgamento de licantropia.
No interrogatório, o Velho Mateus relatou diversas memórias extraordinárias da sua longa carreira de lobisomem e algumas profecias que lhe eram inspiradas nesse estado; mas, principalmente, assomava no discurso a circunstância de assumir-se sempre como «cão de caça de Deus» — à semelhança de outros lobisomens com quem batia os campos e as florestas à noite, perseguindo e lutando com bruxas e feiticeiros; várias vezes descendo até ao Inferno para recuperar cereais e gado roubados por esses esbirros do demónio aos miserandos camponeses.
Segundo o seu depoimento, dele e dos lobisomens seus companheiros dependia o sucesso das colheitas anuais e o bem-estar da comunidade. Culturalmente, dizia o Velho Mateus, ele e os outros lobisomens não se comportavam como lobos: admitiu que nas quintas roubavam pequenos animais quando tinham fome, mas cozinhavam-nos, não os ingerindo crus como faziam as feras. Ou seja: eram lobisomens de Deus e civilizados.
Entre outras perplexidades, os magistrados tinham dificuldade em compreender a insistência do Velho Mateus em lhes dizer, inflexivelmente, que era um “lobisomem por Deus” e, dessa maneira, negar as acusações que lhe faziam de ter um pacto com o diabo que lhe permitisse transformar-se em lobo.
Um pouco frustrado, o tribunal pediu à corte da Suécia que enviasse um juiz mais experiente para resolver o caso. No entanto, o novo juiz ia tardando a chegar, pelo que, a dada altura, foi o próprio assessor do tribunal régio que no ano seguinte acabou por embarcar ao encontro do caso paradoxal do «lobisomem por Deus».
Como é de esperar, o novo magistrado também não foi capaz de persuadir o irredutível Velho Mateus a confessar que tinha um pacto com o diabo, pelo que o ex-lobisomem foi acusado do delito de ilusão diabólica; ou seja, de ter sido ludibriado pelo diabo a comportar-se como um lobisomem e a achar que fizera actos sobrenaturais. Sentenciaram-no a ser açoitado em público e exilado, mas tendo em conta a sua respeitável idade, superior a oitenta anos, deram-lhe apenas vinte vergastadas.