HELVETE

HELVETE: A história da notória loja de discos que foi ponto fulcral da segunda vaga do black metal

Neste trecho do livro “Black Metal: Evolution Of The Cult”, os ‘players’ do black metal norueguês recordam o início e o impacto da HELVETE, e como “não era apenas uma loja de discos, mas sim uma sociedade”.

Na noite do passado dia 10 de Abril, o prédio que abriga a loja de discos Neseblod Records, em Oslo, na Noruega, teve de ser evacuado de emergência devido a um extenso incêndio. Grethe Neseblod, a actual proprietária de parte da loja que, nos anos 90, albergou a lendária HELVETE fundada por Euronymous, o malogrado líder dos MAYHEM, começou por temer que parte do material histórico que o espaço abriga se tivesse perdido para sempre, mas, felizmente, tal acabou por não se verificar.

NESEBLOD RECORDS foi inaugurada em 2013, ocupando parte do espaço em que funcionava a antiga HELVETE, inaugurada por Øystein Aarseth, o Euronymous, dos MAYHEM, em 1991. Até ser encerrada em 1993, em parte devido às rendas altas, mas sobretudo à repercussão dos actos criminosos em que vários músicos da cena local se envolveram, a HELVETE transformou-se num pilar do controverso movimento black metal norueguês.

Neste excerto autorizado à KERRANG! da nova versão expandida do livro “Black Metal: Evolution Of The Cult” do historiador do black metal Dayal Patterson (aqui traduzido), vários membros dessa comunidade underground lembram o início e o impacto da HELVETE, e recordam como “não era apenas uma loja de discos, mas uma sociedade”.

Texto:
Dayal Patterson
Foto do cabeçalho:
Fornecida por Dayal Patterson, cortesia de Finn Håkon Rødland
Fotos da HELVETE:
Fornecidas por Dayal Patterson, cortesia de Samoth, dos EMPEROR

Tradução:
LOUD! MAGAZINE

“O Euronymous construiu rapidamente um senso de unidade, especialmente a partir de meados de 1991, quando abriu um loja de disco em Oslo com a preciosa ajuda de amigos como Stian ‘Occultus’ Johansen (das primeiras bandas de black metal norueguesas Perdition Hearse, Abhorrent/Thyabhorrent e Mayhem) e Marius Vold (dos Mortem e Thorns). Chamada Helvete, a palavra norueguesa para inferno, o seu papel principal era ser um ponto focal para a cena, proporcionando um lugar para quem estava na cena passar o dia e festejar ou dormir durante a noite.”

“Após o suicídio do Dead, o Øystein disse-me logo que não queria ficar mais com a casa, mas que estava a pensar abrir uma loja em Oslo”, explica Marius. “Disse-lhe que era uma boa ideia e que devia ir em frente, porque era importante ter um lugar onde pudéssemos estar todos juntos. Não muito tempo depois voltou a ligar-me e eu tinha tantas ideias que me pediu para fazer parte disso, e aceitei… Eu queria contribuir e ele precisava do dinheiro.

Acho que tínhamos de pagar 6.500 coroas de renda todos os meses, e eu pagava 2.000 disso. A verdade é que tínhamos sempre muita, muita dificuldade para conseguir esses 6.500 por mês. Era uma espécie de co-proprietário, e pessoal como o Occultus, o Thrasher, o Metalion e um outro tipo de que já não me consigo lembrar do nome, toda essa malta de Sarpsborg, ajudava.

O Occultus e eu meio que nos revezávamos nas vendas, ele ficava lá do meio-dia até as quatro ou cinco da tarde, eu vendia depois do trabalho e nos fins de semana. Nunca recebi dinheiro para isso. No início eles até moravam lá na cave, mas, depois de um tempo, conseguiram finalmente encontrar um apartamento a uns metros dali. Morar na loja não era fixe, havia gente durante todo o dia a andar entre as coisas deles – os sacos cama estavam na cave, mas as pessoas iam para a cave também.”

“Durante um tempo, mudei-me para a cave com o Varg [Vikernes, de Burzum]”, recorda o muito influente Tomas ‘Samoth’ Haugen, dos Emperor. “Era uma cave de merda, e, olhando para trás, não posso sequer acreditar que escolhemos morar ali. Quase não ficávamos lá. Era uma cave muito escura, sombria e, claro, bolorenta. Pode dizer-se que mergulhei profundamente na escuridão durante aquela época da minha vida. Havia muitas festas na loja, sempre com muita merda a acontecer. Verdade seja dita, a loja não estava propriamente bem organizada… Às vezes, era um caos total.

Era um sítio mais governado pelo idealismo que pelo bom senso comercial, mas tornou-se um óptimo ponto de encontro para pessoas que partilhavam o interesse pela música e pelo estilo de vida que a acompanhava naquela época. E tinha uma atmosfera a sério… Era muito diferente comparado a como as coisas são hoje. Não havia ‘fãs saídos de um catálogo do black metal’ na altura. Era uma coisa totalmente underground e havia um sentimento mais genuíno entre as bandas e as pessoas envolvidas.”

“A loja era um ponto de encontro social para as pessoas da cena e um lugar para comprar álbuns e obter mais informação sobre o que ia acontecendo”, diz Kristoffer “Garm” Rygg, dos Ulver. “Não podemos, de forma alguma, subestimar a influência da Helvete e do Euronymous nos dias de formação do black metal na Noruega.”

“Havia festas de black metal”, lembra Mortiis. “O clima era geralmente bom, algumas pessoas ficavam bêbadas, outras ficavam de mau-humor nos cantos, toda gente queria viver de acordo com algo, suponho. Lembro-me de ter enfiado uma agulha de um mapa no braço até que o osso a parar e o Euronymous já tinha espetado uma na testa. Lembro também que parti uma garrafa de cerveja na cabeça durante uma dessas festas.Uma vez, apareceu por lá um tipo a brandir uma arma…Enfim, podia acontecer todo o tipo de merda.”

“Como é óbvio, tínhamos algumas ideias malucas sobre isso e aquilo… Tínhamos algumas ideias estúpidas ou estranhas sobre a humanidade”, diz Grutle Kjellson, dos Enslaved. “Mas geralmente estávamos apenas a beber cerveja e a rirmo-nos. Não ficamos ali sentados de braços cruzados… Não o tempo todo.” O Satyr, dos Satyricon, acrescenta: “Na verdade, eles tinham horário de funcionamento, mas estava praticamente aberta quando estava pronta para abrir e fechado quando estava pronta para fechar. Não era só uma loja de discos, mas era uma sociedade.”

Muitas vezes imagina-se que a loja vendia principalmente discos de black metal, mas a verdade é que, na época, simplesmente não havia itens suficientes do género para manter uma loja a funcionar. Na altura, não havia uma “cena do black metal” fora da Noruega. Como tal, a HELVETE tinha nos escaparates discos de bandas que o próprio Euronymous já tinha repudiado, como os Deicide e os Napalm Death. Esses LPs e CDs eram essenciais para pagar a renda, que continuava a ser uma preocupação.

Na verdade, os tempos eram financeiramente difíceis para a maioria da cena naquele momento. Há um estereótipo cansado do movimento black metal norueguês ter sido predominantemente criado por um grupo de “miúdos ricos”, que se rebelaram contra o seu próprio privilégio, um estereótipo tão repetido que tende a permanecer incontestado.

Num exemplo merecedor de destaque em 2018, o jornalista Adam Lehrer escreveu (ironicamente) na revista de negócios Forbes: “o black metal era um movimento branco de classe média e alta, fortemente considerado como sendo, na verdade, uma reação à altíssima qualidade de vida encontrada na Noruega. Em essência, o black metal foi um movimento contra cultural enraizado no privilégio branco e numa espécie de rebelião contra os próprios privilégios dos músicos.

Ignorando a natureza explicitamente norueguesa desta definição, e o facto do artigo afirmar que Faust era o baterista dos MAYHEM, esta generalização continua a ser perigosa. É certamente verdade que a Noruega é hoje um país muito rico, com uma ou duas gerações de jovens financeiramente privilegiados e um tanto protegidos, graças principalmente ao grande sucesso das indústrias do petróleo, gás e pesca.

No entanto, embora a economia do país tenha começado a crescer de forma constante durante a década 1980, os benefícios ainda não tinham surtido efeito para a maioria dos que lá viviam no início da década de 1990. A Noruega já era um dos países mais ricos da Europa, sim, mas o contexto económico destes jovens músicos estava longe de ser uniforme, com muitas bandas, nomeadamente os MAYHEM, a terem pelo menos alguns membros de origens decididamente da classe trabalhadora.

“A Noruega é agora muito rica. Gostaria de ter tido tanto dinheiro quanto o meu filho – ele já não precisa disso”, explica Marius, a rir-se. “Geralmente não tínhamos dinheiro na época, era difícil comprar coisas. A maioria de nós pertencia à classe média, alguns eram da classe alta e outros da classe baixa. Mas a classe média era a classe trabalhadora, a classe baixa era quando a maioria da família recebia assistência social e havia dinheiro extra para arranjar as calças ou comprar sapatos novos.

Depois havia pessoas como o Varg, que estavam na classe alta. Lembro-me de que, de manhã cedo, eles chegavam com as coisas frescas da padaria e, às vezes, levávamos algumas para a Helvete. Porque não tínhamos dinheiro. Se quisesses algo para comer na Helvete, tinhas de fazer tu mesmo e eles só tinham aqueles pães de cachorro-quente – porque os roubávamos e, se não roubássemos, ainda era o pão mais barato que conseguíamos.”

A edição restaurada, ampliada e definitiva de “Black Metal: Evolution Of The Cult” já está disponível para encomenda no site da Cult Never Dies.