Em Dublin, na Irlanda, HEILUNG e EIVØR fundiram o sagrado e o terreno num ritual inesquecível.
Na noite de 17 de Abril, a 3Arena de Dublin foi palco de uma das experiências ao vivo mais arrebatadoras da actualidade: os HEILUNG, acompanhados por EIVØR, levaram à Irlanda uma cerimónia sonora que, na génese, transcende os limites do habitual espectáculo musical. Mais do que um concerto, aquilo que se viveu foi um verdadeiro ritual, como a própria banda nórdica faz questão de salientar — uma cerimónia em que o som, a luz, o cheiro e a presença se fundem para evocar um tempo anterior ao tempo.
Esta paragem na capital irlandesa integrou a derradeira tour da banda por tempo indefinido. E, talvez por isso, cada gesto, cada batida, cada sopro de incenso tivesse um peso especial — como se tudo fosse uma despedida. O palco, ornamentado com ossos, peles e madeira, mais parecia um altar pagão erguido no coração de um espaço moderno. A iluminação, de tons escuros e avermelhados, recriava o brilho do fogo e envolvia a sala numa penumbra quente, quase hipnótica.
Em Dublin, o ritual começou com uma invocação. No meio do fumo e do cheiro intenso a incenso, uma voz recordava ao público a origem comum de tudo: “humanos, animais, plantas e elementos — todos nascemos do mesmo grande ser que existia antes de tudo”. Foi neste estado de comunhão que ressoaram os primeiros sons de «In Maidjan», uma peça que funciona como pórtico de entrada para a linguagem única dos HEILUNG: percussões tribais, cânticos ancestrais, vocalizações guturais e uma narrativa visual e sonora que alterna entre cenas de batalha, sacrifícios e êxtases espirituais.

























Durante hora e meia, o tempo pareceu suspenso. As vozes de Maria Franz, Christopher Juul e companhia guiaram-nos por uma discografia sem paralelos — tanto na forma como na intenção. Cada canção era uma evocação, cada pausa uma respiração ritual. Um dos momentos mais arrepiantes da noite foi a interpretação de «Nikkal», peça baseada naquele que é considerado o mais antigo exemplo de música escrita da história da humanidade. Descoberta nos anos 1950 no norte da Síria, esta oração à deusa semita dos pomares, Nikkal, remonta a 1400 a.C. e foi aqui cantada em harmonia por quatro vozes, num crescendo delicado que se iniciava com sinos e culminava numa reverência ancestral.
Outros temas marcantes, como «Tenet», foram recebidos com um silêncio reverente ou gritos catárticos, dependendo da intensidade do momento. No entanto, nenhum outro tema provocou tamanha libertação como «Hamrer Hippyer», o clímax frenético da cerimónia. Com ritmos galopantes e uma barragem de percussão avassaladora, a peça encerrou a noite com a mesma força ritual com que começou — incenso a arder, salvas de fumo a cruzar o ar e um público completamente rendido.






Antes de tudo, o público foi presenteado com um momento mais intimista, mas igualmente hipnótico: EIVØR, artista das Ilhas Faroé, apresentou um espectáculo de 45 minutos em que explorou o seu mais recente álbum, «Enn», e alguns temas mais antigos. Alternando entre a guitarra e o bodhrán, Eivør fez da sua voz melosa o centro de um concerto que equilibrou a folk nórdica com elementos electrónicos subtis e atmosféricos.
A actuação começou com «Jarðartrá» e «Hugsi Bert Um Teg», dois temas recentes que estabeleceram desde logo uma ligação emocional com o público presente. Em «Salt», a energia subiu e, na recta final, Eivør chegou mesmo a partir uma das baquetas com que batia no tambor — uma metáfora perfeita para a intensidade emocional da sua performance. Mais adiante, a artista evocou a memória da série ‘The Last Kingdom’ com «Hymn 49», antes de encerrar com «Enn» e «Upp Úr Øskuni», duas peças onde a imensa capacidade para nos transportar para paisagens geladas e interiores se mostrou em plena força.
Com concertos agendados em Lisboa e no Porto para Outubro, a estreia de EIVØR em Portugal promete ser um dos momentos altos do Outono. Após o que se viu em Dublin, é bastante seguro dizer que quem assistir não sairá indiferente. Os HEILUNG, por seu lado, despem-se dos palcos por tempo indeterminado. Mas o que fica é a memória de um ritual que nos recorda da nossa origem comum — onde os deuses, os mitos e os antepassados falam através da música.