HAWKWIND

HAWKWIND: Ácido, nudez e pesadelos de ficção científica

É praticamente impossível perceber se o rock psicadélico teria existido sem eles, mas uma coisa é certa… Por esta altura, o nome HAWKWIND já tem um lugar garantido no panteão da melhor música britânica.

Hoje, quando são vistos como uma banda que transcende o tempo, o espaço e muitas das sub-culturas musicais a que deram origem, dizer que são lendários acaba por soar a eufemismo. Movidos por uma enorme vontade de fazerem apenas o que queriam, da forma como queriam e no momento que escolhiam.

Ao longo de mais de quatro décadas nunca se curvaram perante a comunicação social, nunca fizeram os que as pessoas esperavam deles e, ao longo de um percurso mirabolante, sempre fizeram questão de desafiar todas e quaisquer convenções. Olhando para trás e para o seu legado, talvez resida precisamente aí o segredo da sua importância transversal a uma série de tendências no espectro da música pesada mais aventureira. Dave Brock, o guitarrista, ocasional vocalista e, sempre, mentor do colectivo britânico guiou-nos por uma viagem alucinante.

Dave Brock sempre foi a principal fonte de energia e direcção por trás dos Hawkwind, por isso a lógica dita que este artigo comece por aflorar a sua carreira no anos pré-Hawkwind. Feitas as contas, foi esta cadeia de eventos que levou à formação da banda e à direcção que tomaria ao longo dos anos. Provavelmente, se Brock nunca tivesse decidido pegar num banjo ou tocar em vários grupos de jazz na recta final dos anos 50, uma das mais destemidas bandas britânicas no que toca à criatividade nunca teria existido.

Foram, de resto, esses primeiros anos, passados em grande parte a emular o espírito de Nova Orleães com os The Gravnier Street Stompers que, uma década mais parte, inspirariam a criação do seu colectivo de sempre. Uns anos antes tinha-se dado o momento da revelação; o músico descobriu a guitarra eléctrica, começou a frequentar os clubes mais in da altura e, desde bem cedo, mostrou interesse na exploração do instrumento muito para lá do convencional. Junte-se a isto a sua visão muito pessoal do mundo, a lenda diz que nos 60s era comum vê-lo em manifestações, e estavam semeadas as sementes para tudo o que viria a seguir.

O fertilizante fê-las crescer nos anos seguintes, primeiro através de uma relação chegada com Eric Clapton e participações nos The Dharma Blues Band e The Famous Cure, com os quais atingiu alguma exposição e fez digressões; foi também neste período que se cruzou pela primeira vez com o malogrado Nik Turner, outra peça essencial no percurso dos nossos heróis. Este último projecto manteve-se no activo até 1969, altura em que os músicos decidiram seguir caminhos distintos. O de Brock foi passado a tocar em pubs e nas ruas de Londres, a fazer o que podia para sobreviver.

NASCE O MITO

Durante uma das suas actuações improvisadas em Tottenham Court Road, Brock cruzou-se com o baixista John Harrisson, que trabalhava naquela zona. A amizade cresceu e, com a ajuda de Mick Slattery (ex-The Famous Cure) e de um baterista, Terry Olis, encontrado através de um anúncio no Melody Maker, começam a fazer música juntos.

Nik Turner, que o guitarrista tinha reencontrado numa noite em que estava a tocar à porta do famoso Marquee – situado exactamente no mesmo prédio dos escritórios da editora Charisma, onde sete anos depois estariam a assinar um contracto – inicialmente juntou-se a eles como roadie, mas o seu saxofone teimava em sair da caixa durante os ensaios e, uns meses depois, passou a membro oficial do colectivo.

Acompanhados também por Dik Mik começam a dar os primeiros concertos e, em Notting Hill, uma curta jam de dez minutos bastou para que Douglas Smith, um agente da Clearwater Productions, os contratasse. Ainda com a designação Hawkwind Zoo gravam uma maqueta de dois temas antes de trocarem Slattery por Huw Lloyd Langton e serem contratados pela United Artists, que editou o single «Hurry On Sundown» e a estreia homónima de longa-duração em 1970.

Ouvidos agora, os temas mostram claramente a curiosa fusão de rock, blues e pop, condimentada de forma selvagem pelo free jazz com texturas electrónicas. O que lhes ainda lhes faltava a nível de sofisticação era compensado pela originalidade da abordagem e, ao vivo, apoiados num elaborado show de luzes e movidos a drogas psicadélicas, os músicos começavam a estabelecer a sua identidade própria e a crescer.

Andávamos um bocado ao sabor da inspiração, sendo que nessa altura o que mais nos preocupava era passar ao público a ideia de que não era mau, de todo, se deixassem a cidade para voltar ao campo. Queríamos mudar qualquer coisa, era esse o conceito do mundo em que vivíamos na altura. Era um sonho, que de certa forma acabou por tornar-se real.

Mostrando desde cedo que os Hawkwind sempre foram mais um colectivo de músicos com um mesmo estado de espírito do que uma banda com formação rígida, foi com Dave Andersson (ex-Amon Düll II) que se fizeram à estrada logo a seguir à edição do disco de estreia e, durante os doze meses seguintes, mantiveram-se sempre em digressão. Muitas são as peripécias que viveram nessa altura, mas há uma que ficou para sempre gravada na memória colectiva da geração de 70.

Em Agosto, a banda passou uma semana a tocar à porta do festival da Ilha de Wight, em protesto para com o preço demasiado elevado dos ingressos. Jimi Hendrix, que actuava no evento, saiu do recinto para vê-los e, durante o seu concerto, dedicou um tema ao “the cat with the silver face”… Nem mais nem menos que Nik Turner, que tinha pintado a cara de prateado nesse dia.

Entretanto a imprensa já tinha dado por eles, traçando elogios à sua abordagem arrojada e o perfil do grupo começava a crescer. A sua música também. «In Search Of Space», editado 1972, deu sinais de um amadurecimento impressionante a todos os níveis. Agora um septeto, com a entrada da performer Stacia, que tinha subido ao palco em Glastonbury, acabando por transformar-se noutra peça-chave dos concertos desta fase, os músicos continuaram a apostar em instrumentais bastante longos, mas começaram a introduzir as primeiras vocalizações e mostravam-se mais concentrados na manutenção de um ritmo poderoso.

O resultado era repetitivo q.b. e, combinado com o show de luzes e a abundância de drogas no palco e fora dele, tinha um efeito hipnótico sobre o público – os Hawkwind estabeleciam uma missão, tomar de assalto os sentidos da plateia, de todas as formas possíveis e imagináveis.

Foi a fase da total alucinação psicadélica. Decidimos pôr a frase “trying to take people on a trip without taking trips” na contra-capa do primeiro álbum, mas isso só funcionava na teoria porque na altura toda a gente tomava LSD – na banda e no público.

VOOS MAIS ALTOS

Aquela que é comummente vista como a fase mais influente e importante da carreira da intrépida troupe britânica começa exactamente nesta altura e, não estranhamente, coincide com o início da colaboração com um dos músicos mais lendários de que há memória no universo do rock’n’roll. 1972 e 73 foram anos de enorme expansão em todas as frentes, culminando num single que alcançou o #3 do top de vendas britânico e um álbum que trepou à posição #9, com concertos esgotados um pouco por todo o lado.

A escalada para este período de sucesso tinha começado, no entanto, no Verão de 71, no exacto momento em que Dave Anderson deixou o colectivo e foi substituído por um ex-roadie de Hendrix, Ian Kilmister. Mais conhecido como Lemmy, o baixista trouxe consigo um amigo de longa data, Simon King, com quem já tinha tocado nos Opal Butterfly, para completar a secção rítmica.

A entrada de ambos funcionou como a proverbial lufada de ar fresco no seio do colectivo e o contributo do futuro líder dos Motörhead, um guitarrista transformando em baixista, tornou a música mais densa e mais pesada, mas também um pouco mais melódica, orelhuda e envolvente. A experiência, que nesta altura contava também com os préstimos de Robert Calvert, durou apenas dezoito meses e, a 13 de Fevereiro de 1972, materializou-se no palco da mítica Roundhouse, em Londres.

A incontornável «Silver Machine» foi captada pela primeira vez nessa ocasião e, depois de misturada em estúdio, com a voz de Calvert (afastado temporariamente por problemas mentais) a ser substituída pela de Lemmy, acabou por ser disponibilizada em single no Verão desse ano, trepando ao #3 da tabela de vendas no Reino Unido.

Tivemos o nosso maior êxito comercial de sempre no Verão de 1972 e esse foi um momento mesmo muito importante na nossa carreira. Naquela altura ainda éramos uma banda jovem e isso permitiu-nos fazer muitas coisas com que, até então, só tínhamos sonhado. Comprámos o nosso próprio P.A. e três carrinhas, para transportarem todo o material e o grupo. A «Silver Machine» funcionou como uma espécie de libertação, deixámos de estar dependentes fosse de quem fosse para tocarmos. Podíamos ir a qualquer lado e estava garantido que íamos dar o nosso espectáculo; levávamos todo o P.A., a equipa, a Stacia, as projecções e as luzes.

De um momento para o outro, os Hawkwind transformaram-se num nome familiar e a «Silver Machine» tocava em todas as jukeboxes. Apareceram no Top Of The Pops, mas, como esperado, trocaram as voltas à BBC. Primeiro recusaram-se a ir aos estúdios do canal público britânico e, depois, exigiriam que enviassem uma equipa para os filmar a tocar o tema ao vivo num concerto. O interesse que, na altura, rodeava Brock, Turner, Lemmy e companhia era de tal ordem que a BBC concordou.

O terceiro álbum, com o título «Doremi Fasol Latido», chegou a 24 de Novembro de 1972, dando continuidade à improvável explosão de reconhecimento público que, uns escassos anos antes, era impensável. O disco atingiu a posição #14 do top britânico, o que, na altura, ainda representava um número considerável de discos vendidos e, pela primeira vez, os músicos viram-se com dinheiro na carteira.

De seguida, no topo da criatividade, trataram então de idealizar e montar a engenhosa Space Ritual Tour. Um motim de cores, dança e música, com luzes, slides, filmes e projecções, o espectáculo – que habitualmente durava mais de duas horas – afirmou-se como suficientemente aventureiro para lhes granjear elogios da indústria e dos seus pares, esmagando de uma vez por todas a ideia de que eram apenas um bando de freaks de Notting Hill a brincar às bandas.

Nas digressões de 72 e 73, deste e do outro lado do Atlântico, o Space Ritual foi usado para promover «Doremi Fasol Latido», um álbum mais pesadão e espacial, que deve ter deixado muitos dos que apareceram nos concertos para ouvir temas na mesma onda da «Silver Machine» a coçar a cabeça. «Space Ritual», o álbum, foi captado em concerto em Liverpool e Londres, editado a 11 de Maio de 1973 e furou uma vez mais as tabelas no Reino Unido e, pela primeira vez, nos Estados Unidos.

Eram outros tempos. Ao contrário do que se passa hoje em dia, arrecadámos uma boa maquia com as vendas dos discos e, depois de termos comprado o P.A. e as carrinhas, investimos tudo o que sobrou na construção de um cenário a sério, na criação de adereços e também em instrumentos. Comprámos luzes, máquinas de fumo, roupas e, basicamente, tudo aquilo de que nos lembrámos.”

ASCENSÃO E QUEDA

Durante 1973, os Hawkwind atingiram o seu pico, a todos os níveis. Fizeram digressões no Reino Unido, na Europa e nos Estados Unidos, venderam mais discos que nunca. No entanto, também perceberam rapidamente que um sucesso tão repentino acaba sempre por revelar-se uma faca de dois gumes. Quando, um ano depois de «Silver Machine», editaram «Urban Guerilla» como single, tornou-se óbvio que tinham perdido o comboio que os tinha colocado nas bocas do mundo.

O Space Ritual, por seu lado, revelou-se tão impressionante na sua grandeza que acabou por atrofiar o crescimento criativo do grupo, que se se viu atirado para uma daquelas rodas de hamster, onde, durante boa parte da sua carreira futura, passou o tempo a tentar repetir o génio do passado. Não teve ter ajudado que aquele “comprámos tudo aquilo de que nos lembrámos”, proferido pelo Dave Brock, deva ter incluído também doses massivas de drogas.

Actualmente, vendo os vídeos daquela altura, com a Stacia a ondular ao sabor do transe psych de temas como «Born To Go», «Space Is Deep», «Orgone Accumulator» ou «Master Of The Universe», percebe-se que não devem ter sido poucas. É sabido que o space rock, rock psicadélico ou o que quer que lhe queiram chamar este mês, sempre esteve ligado ao consumo de substâncias ilícitas. Muitas, de preferência.

Numa altura em que o LSD constituía a “fritaria” de eleição dos músicos e do seu público, não deixa por isso de ser curioso que aquela que é vista como a formação clássica do colectivo tenha acabado por desintegrar-se totalmente no momento em que Lemmy foi dispensado… Por ter sido apanhado com a droga errada.

Muitas das pessoas que passaram pela banda ao longo dos anos eram músicos e artistas criativos e excêntricos… O Lemmy foi, definitivamente, um deles. Quem sabe o que teria sido da «Silver Machine» sem aquela voz? O Robert Calvert foi outro, um letrista fantástico e muito criativo, que contribuiu muito para a música que fizemos nessa fase. O Dik Mik foi a outra peça essencial na criação do «Space Ritual»… Um pioneiro no que toca à música electrónica e que contribuiu imenso para os discos em que participou. Eram tipos com ideias arrojadas e decidimos ir em frente, investindo tudo o que tínhamos na criação de um concerto grandioso, como nunca ninguém tinha feito na altura.

Acompanhada pelo teclista/violinista Simon House e por Michael Moorcock, que tomou o lugar de Robert Calvert como poeta, a banda grava «Hall Of The Mountain Grill» e «Warrior On The Edge Of Time», em 1974 e 1975 respectivamente. Os dois revelaram uma abordagem ainda um pouco mais dinâmica e, a espaços, versátil, à música dos Hawkwind, mantendo-se até hoje como dois títulos incontornáveis no catálogo destes intrépidos aventureiros.

Quiçá os últimos, dirão alguns. Uma coisa é certa, foi nessa altura que escreveram e gravaram «Motorhead», a última composição de Lemmy para o grupo. Em Maio de 75, voltam a fazer o voo transatlântico e era imperativo que a digressão fosse um sucesso para se afirmarem de vez na América do Norte. Na fronteira entre os Estados Unidos e o Canadá, Lemmy foi apanhado com uma quantidade indiscriminada de sulfato de anfetamina e, de seguida, detido pelas autoridades, que tomaram a substância por cocaína, um crime mais grave.

Preocupados com um hipotético falhanço da tour, os restantes músicos deixaram Lemmy para trás – literalmente! – e seguiram caminho com Paul Rudolph no baixo. De volta a Inglaterra, o Sr. Kilmister formou os Motörhead. Já em 1976, a banda vê Stacia partir e opta por separar-se da United Artists e do seu management, sendo que os novos selo e manager nunca conseguiram captar na globalidade a essência do projecto, preferindo incentivar uma mudança profunda na sua imagem em vez de fomentarem a individualidade que os tinha caracterizado até então.

Não é por isso estranho que tenham terminado os 70s divididos e sem enfoque, com alguns elementos a torcerem por uma abordagem mais pop. No meio de um enorme rebuliço de disputas internas e constantes mudanças de formação, os discos «Astounding Sounds Amazing Music», «Quark Strangeness And Charm», «25 Years On» e «PXR5» são o reflexo de um grupo fracturado, demasiado inconsistente para fazer jus ao que tinha ficado para trás.

O sucesso é relativo, pode manifestar-se de outras formas muito gratificantes. É estranho, mas talvez porque tenhamos definido desde cedo a personalidade da banda ou talvez porque sempre trabalhámos com músicos que, antes de fazerem parte do grupo eram nossos fãs, a verdade é que, independentemente de quem tocou nos discos, todos soam a Hawkwind. Às vezes parece que nos transformámos em algo maior… Algo mais que só uma banda de rock’n’roll. É uma coisa estranha, mas às vezes acho que nos transformámos numa entidade que está muito além do mundano.

Apesar do relativo regresso à forma com «Levitation» e «Sonic Attack», de 1980 e 81, que revelaram inclusivamente um acréscimo da quota de peso numa altura em que a N.W.O.B.H.M. estava ao rubro, os Hawkwind não mais conseguiram repetir o êxito atingido no período inicial da sua carreira, mas também nunca deitaram a toalha ao chão, caminhando a passos largos para a marca dos 50 anos de carreira depois de terem sobrevivido aos anos 80 e 90, no meio de um frenesim de experimentação que lhes permitiu, para o melhor e para o pior, continuarem a gravar e a tocar ao vivo de forma regular.

Vinte e seis álbuns depois, o guitarrista Dave Brock mantém-se como único elemento sobrevivente da época dourada, mas os Hawkwind – e a imensidão de projectos que lhes estão associados, como era o caso do Nik Turner’s New Space Ritual, nunca deixaram de mostrar que há bandas para as quais o sucesso não se mede, de facto, pelas tabelas de vendas.

Há muito que estão arredados dos tops e das salas maiores, a não ser que decidam interpretar um clássico na íntegra, como aconteceu com o «Space Ritual», a 22 de Fevereiro de 2014, perante uma O2 Sheperd’s Bush Empire totalmente esgotada, mas o profundo impacto que tiveram em diversas gerações de músicos continua a ser incomensurável.