FESTIVAL SONS NO MONTIJO @ Frente Ribeirinha do Montijo | 09-10/06/2023 [reportagem]

Se vos aborrece a azáfama de muitos dos festivais veraneantes, com empurrões e multidões, calor abrasador, filas intermináveis, o carro a quilómetros de distância, as bandas a tocar centenas de metros lá à frente ao ponto de passarmos mais tempo a olhar para os ecrãs do que para o palco… pois bem, o Sons No Montijo é o festival chill pelo qual tanto anseiam. Excelente ambiente, espaço de movimento mesmo nos momentos de maior afluência, a brisa do rio a passar ao nosso lado, tranquilidade absoluta no acesso à zona do festival, lugares para estacionar literalmente à porta, banquinhos para descansar e uma pequena mas plenamente suficiente oferta de comes e bebes – demos por nós a desejar que a coisa tivesse mais dias e mais bandas para nos sentirmos neste ambiente de férias durante um pouquinho mais de tempo.

O cartaz também primou pelo bom gosto das escolhas, com nomes portugueses a denotar critério e dois headliners indiscutíveis – no primeiro dia, os Mão Morta, eventualmente a banda mais lendária a ter alguma vez saído da nossa cena nacional, e no segundo, os noruegueses Madrugada, a regressarem a Portugal depois de uma passagem marcante em 2019 aquando do seu regresso à actividade, agora já armados com o novo «Chimes At Midnight» e com um setlist celebratório de uma carreira ímpar que deixou todos rendidos.

Mas já lá vamos, porque antes do trio (ao vivo, quinteto) de Oslo nos ter arrebatado os corações, houve muita e boa música para ouvir. Começando pelos norte-americanos, perdão, conimbricenses Sean Riley & The Slowriders. Não fosse a simpatia em bom português do frontman Afonso Rodrigues entre músicas, no entanto, e bem podem enganar quem não os conheça, que aquilo é mesmo um Sean e outra malta algures do midwest norte-americano, a tocar umas malhas bem bluesy, que emanam aquela brisa quente que envolve uma boa jam no deserto. Tanto os temas mais orelhudos como os de carácter mais exploratório resultam igualmente bem ao vivo, nota-se que se trata de uma banda já com um traquejo interessante, e este concerto foi, para além da abertura perfeita para um final de tarde quente junto ao rio, mais uma confirmação de que são um dos valores seguros do rock nacional.

De lamentar, neste primeiro dia, apenas a relativa pouca afluência das primeiras horas. Só a meio do concerto dos Quinta do Bill, eventualmente atraídos pelo ambiente irresistível de festa que Carlos Moisés e companhia armam cada vez que se apanham num palco, é que as filas em frente ao palco começaram a ficar mais densas. Ainda assim, como o próprio Moisés fez notar no fim da actuação, um público um bocadinho “parado”, mas nunca por responsabilidade do já histórico conjunto de Tomar e da sua aproximação ímpar à folk. Às vezes não se lhes dá o devido valor, mas é de enaltecer a forma como os Quinta do Bill pegam no folk rock e lhe vão juntando pedaços vários de world music e variando atmosferas e origens de tema para tema, mantendo no entanto sempre a mesma chancela do seu estilo – e uma “portugalidade” muito curiosa, mesmo quando interpretam sons de origens noutras paragens. Os anos vão passando, já só restam o Moisés e o baixista Paulo Bizarro da formação original, mas para além de os “velhotes” manterem uma vitalidade incomum, também os restantes foram integrados na perfeição ao longo do tempo, com destaque natural para a nova violinista Carla Santos, que tem uma importância determinante nos temas e é uma digna sucessora de Nuno Flores (Corvos), primeiro, e Dalila Marques, depois, que durante muitos anos asseguraram o posto. Da festa dançável de «Sra. Maria do Olival» ou «Voa (Voa)» até aos já esperados momentos mais emocionais de «Se Te Amo» ou «Menino», ou até uma mais festiva que no álbum mas surpreendentemente intimista «A Libertação», os pontos altos foram muitos, culminando, como é inevitável, nos «Filhos da Nação», que imaginamos estejam “obrigados” a tocar em último para sempre. Com ou sem essa, no entanto, já estava mais que vincada a ideia de que foi um concerto magnífico.

Ali do lado esquerdo do público, mesmo junto à grade, espreitámos um discreto (para já) Adolfo Luxúria Canibal a apanhar as últimas músicas dos Quinta do Bill e a rever alguns amigos, reforçando esta ideia de proximidade e de poucas barreiras que este simpático festival transmite. Claro que é sempre curioso ter estas pequenas visões dos artistas no seu quotidiano, um Adolfo em modo “pessoa normal”, ele que nem uma hora depois disso já estava em cima do palco com a sua ferocidade habitual, debitando palavras com timbre, dicção e significado como só ele consegue imprimir. O riquíssimo catálogo dos Mão Morta permite-lhes ter diversos setlists com moods para as mais variadas ocasiões, mas independentemente das suas escolhas, e por mais vezes que os vejamos, o impacto é sempre tremendo. Com o resto da banda, Vasco Vaz, Miguel Pedro, Rui Leal, António Rafael e Ruca Lacerda, na forma demolidora do costume, corremos o risco de dizer que é praticamente indiferente o que tocam, já que aquele frio acolhedor que nos gela a espinha, devidamente arranhada pelas palavras cortantes do Adolfo, vai estar lá sempre. Quando a isso juntam o vendaval gélido do sugestivo último álbum «No Fim Era O Frio» para dominar a performance, temos o antídoto perfeito para o tórrido calor veraneante que já se faz sentir nestes dias. Uma prestação de arrepiar, com peso a rodos, expressividade, poesia crua e toques de génio. A comparação é óbvia e transversal à sua carreira, mas faz tanto sentido termos visto os Swans e os Mão Morta, mais uma vez, com poucos dias de separação entre si.

Estava portanto alta a fasquia para o segundo dia, que começou de forma não tão “calma” como os Calmness poderiam sugerir. O projecto de Gui Galão, na sua primeira aparição em festival, demonstrou o porquê dos elogios que tem recolhido desde o lançamento do «don’t ask if i’m okay» de estreia em 2021, com canções intimistas mas electrizantes, algures entre o chamber pop e o shoegaze, tanto evocando Red House Painters como influências mais contemporâneas (Phoebe Bridgers, por aí). A postura em palco meio descontraída, meio awkward, é totalmente apropriada ao material, que de facto ganha muito, texturalmente e em termos de peso, com a adição do novo guitarrista ao vivo.

Aliás, bem gostaríamos de, por exemplo, ter assistido a mais um set dos Calmness, por exemplo, do que aos Ash Code que se seguiram. É banda que até já tem algum nome no circuito europeu do darkwave, mas foram inquestionavelmente o tiro ao lado desta edição do festival. Não se pode acertar todas, infelizmente, e a ausência total de intensidade da sua prestação, a postura completamente inadequada ao palco em que estavam (desta vez, a descrição awkward não é usada de forma encantadora como foi na banda anterior), as batidas incessantes e repetitivas com zero personalidade às quais as vozes indiferentes, seja de Alessandro Belluccio ou de Claudia Nottebella, não acrescentam nada, já para não falar na guitarra inaudível (e não por algum problema de som), tudo se juntou numa cacofonia aborrecida e desnecessária. Adding insult to injury, ainda tivemos que assistir ao azeite indescritível das projecções, que são assim uma mistura de vídeos amadores das férias da malta da banda (foram a Berlim e a Nova Iorque e a Copenhaga e tudo!) com experiências de nível principiante no Adobe Premiere. Percebe-se a colagem aos Sisters Of Mercy, mas a única coisa em que os Ash Code se conseguiram aproximar deles foi no facto de, actualmente, ambos darem concertos absolutamente horríveis.

Mas a redenção estava ali, à mão de semear, logo a seguir. Os Madrugada foram o absoluto oposto da má onda dos Ash Code, e durante quase duas horas fizeram-nos esquecer de tudo o resto que se possa passar de desagradável no mundo. Aumentando ainda mais a fasquia em relação aos concertos no Lisboa Ao Vivo e no Hard Club aquando da Industrial Silence Tour, mostraram que são uma banda de topo, em grande forma, que sabem ter um público na mão como ninguém e que são transversais a quaisquer preferências de estilo ou género. Noise rock, indie, alternativo, folk, blues, prog, goth country? Chamem-lhes o que quiserem, porque quando estamos a levar com malhões do calibre de «Vocal», por exemplo, nada disso mais importa. Com Sivert Høyem numa forma vocal e física imparável, incluindo um par de incursões pelo photo pit adentro para distribuir abraços e high fives ao pessoal em êxtase, e com os guitarristas Cato Thomassen e Christer Knutsen (este último também nas teclas), membros ao vivo que acompanham o trio nuclear nesta nova incarnação da banda, a integrarem-se na perfeição e com grande estilo, os Madrugada proporcionaram-nos um desfilar de grandes canções, todas elas, tão simples como isso, que percorreram não só todos os seus álbuns, como também todos os estados de espírito. Da nocturna e minimal «Strange Colour Blue» (com foco de luz / câmara apontada ao público em delírio), à energética e urbana «Blood Shot Adult Commitment», passando pela irresistivelmente tongue-in-cheek (e impossivelmente orelhuda) «Look Away Lucifer», já para não falar da obrigatória «Majesty», de ir às lágrimas com Sivert sozinho na guitarra acústica, a última antes de encore, ou à apoteose da habitualmente final «Valley Of Deception», foi uma autêntica montanha-russa emocional. De realçar também a forma como os temas novos se incorporaram no setlist com uma naturalidade extraordinária, como se sempre dele tivessem feito parte. Terá sido uma decisão seriamente ponderada, a de continuar a escrever música nova sem o saudoso Robert Burås, mas com temas como a fortíssima «Nobody Loves You Like I Do» e a arrebatadora «Help Yourself To Me», bem como a mais soturna «Stabat Mater», está aqui a prova de que foi também uma decisão certíssima. Para a festa ser total, só faltava mesmo a celebração do aniversário do baixista Frode Jacobsen, que aconteceu por já passar da meia noite (o concerto mais tardio que deram este ano, explicou o vocalista), e se primeiro o happy birthday foi cantado na versão inglesa, foi com um espontâneo parabéns a você que se seguiu que quase que apareceu uma lagrimita no canto do olho dos noruegueses. Um momento único do público português que, tal como o Sivert também desejou, esperamos que tenha sido capturado em vídeo por alguém. Mostrem-nos lá isso!

O único “problema” desta actuação maior? É que a fasquia do evento agora ficou altíssima. Mas confiamos que para o ano o Festival Sons No Montijo nos vai conseguir proporcionar mais magia deste nível. Até lá!

 

FOTOS: Estefânia Silva