O “rock está morto e soa banal há mais de duas décadas”, grita uma franja geriátrica da imprensa, desesperada para se manter relevante. Este é um sentimento que, irritantemente, ainda prevalece em alguns meios, mas o novel EVIL LIVE FESTIVAL, que decorreu nos passados dias 28 e 29 de Junho, na Altice Arena, provou que essa ideia nunca foi menos verdadeira que em 2023. O evento de produção 100% nacional dedicou dois dias às sonoridades mais pesadas – em todas as suas vertentes – e, tendo como espinha dorsal uma aposta na diversidade e multiplicidade de géneros e subgéneros do que é visto habitualmente como metal e rock pesado, apresentou uma edição inaugural que funcionou como uma lufada de ar fresco, tanto pela dimensão como pelo propósito, assente na aposta em propostas que foram do mainstream ao alternativo, dos riffs icónicos dos anos 90s até às guitarradas electrizantes das tendências mais contemporâneas, dos grandes nomes estabelecidos ao talento emergente. Num país em que, no que diz respeito à música de peso, os festivais são quase todos muito orientados para os nichos (do que já é um nicho num mercado tão pequeno como o nacional) ou direccionados para públicos muito específicos, o EVIL LIVE mostrou como se podem misturar sonoridades tão diferentes, algumas até dicotómicas, num cartaz capaz de apelar a gente suficiente para manter um espaço como a Altice Arena muito bem-composto durante dois dias. Realizado em formato indoor, o que permite sempre outras condições no que toca a acessos e infraestruturas para o público melómano, este é um evento com um potencial enorme de expansão.
Quarta-feira, 17:15. Com a grande maioria do público ainda a trabalhar, ou a saír dos empregos, os MAMMOTH WHV (liderados por Wolfgang Van Halen, filho do lendário Eddie Van Halen) foram a primeira banda a subir ao palco instalado num dos extremos da arena e, com tanto espaço à disposição, depararam-se com uma plateia constrangedoramente despida. Isso não pareceu, no entanto, demover ou abalar as intenções do ‘Wolf’, que se manteve estoicamente no leme de uma banda muito sólida, que conta com três guitarristas e uma secção rítmica cheia de groove. Apesar de, nos discos, ser responsável por todos os instrumentos e pela voz, ao vivo o jovem músico é acompanhado por alguns nomes bem conhecidos, como o guitarrista Frank Sidoris – que faz parte da banda de Slash com Myles Kennedy & The Conspirators – e o baterista Garrett Whitlock, que já tocou com Mark Tremonti. Em palco, o próprio ‘Wolf’ canta e toca guitarra e, apesar de ter sido curta, esta actuação de rock de qualidade, que incluiu os três singles mais recentes do grupo e dois temas de álbum de estreia, permitiu perceber-se que herdou os genes do pai, e que a sua banda tem potencial.
Também com o gene do talento criativo no sangue, Griffin Taylor, o filho do Corey dos SLIPKNOT, actuou a seguir com os seus VENDED e, ao contrário do que se tinha passado com a banda de abertura, os jovens músicos sofreram de uma mistura de som terrível, que os prejudicou sobremaneira e que, verdade seja dita, não deu para perceber sequer as “nuances” que caracterizam as versões de estúdio de temas como «Ded To Me», «Am I The Only One» ou «Burn My Misery». Não sabemos como estava a mistura em cima de palco, mas Griffin manteve todo o bravado e deu a ideia de terem feito novos fãs na plateia – o que por si só, sobretudo dada a amálgama sonora, já deve ter sido uma vitória.
De seguida chegaram os ELEGANT WEAPONS, uma super-banda criada pelo guitarrista Richie Faulkner, dos Judas Priest, e pelo vocalista Ronnie Romero, dos Rainbow, cuja formação em palco conta com o baterista Christopher Williams, dos Accept, e com o baixista Dave Rimmer, dos Uriah Heep. O grupo juntou-se durante a pandemia, lançou recentemente um álbum de estreia, intitulado «Horns For A Halo», e fez o primeiro concerto da sua carreira no passado dia 12 de Junho. Entretanto, andam em digressão a fazer “suporte” aos PANTERA e, ao olhar para eles nesta ocasião, ninguém diria que são uma criação tão recente, tal foi a convicção e confiança com que exibiram toda a experiência acumulada nos currículos individuais dos envolvidos. Sólidos como uma rocha, destilaram o heavy metal de ADN tradicional, mas com abordagem mais contemporânea, contido em canções como o tema-título, «Blind Leadind The Blind», «Dead Man Walking» ou «Do Or Die», que abriu o concerto como um salvo de espírito heavy metal primordial.
Provavelmente para mal dos nossos pecados, o som na sala, que parecia ter melhorado um pouco durante a actuação dos heavy metallers, voltou a dar uma curva para o pior no exacto momento em que Max Cavalera e os seus SOULFLY deram início a uma prestação bem intensa. A sequência devastadora de «Back To The Primitive», «No Hope = No Fear», «Downstroy» e «Seek ‘n’ Strike» deixou uma grande do público em polvorosa. Pese a amálgama sonora algo confusa (outra vez!), tanto cá atrás como mais perto do palco, a verdade é que a multidão foi arrastada imediatamente por uma das actuações mais intensas do primeiro dia do festival. Quiçá alimentado pelos constantes apelos de Max (ouviram-se exclamações de “porrada!” e “c****lho!” a rodos e até um inusitado “p*ta que pariu!”), o quarteto cuspiu um alinhamento de títulos cuidadosamente seleccionados do vasto fundo de catálogo da banda. Tema após tema, a energia e o tamanho do mosh pit iam aumentando, com Cavalera a liderar o ataque musical acompanhado por Mike DeLeon na guitarra, Mike Leon no baixo e pelo seu filho Zyon Cavalera na bateria. Juntos, entregaram um conjunto poderoso que incluiu muitos favoritos dos fãs do SOULFLY, duas faixas reminiscentes do tempo nos Nailbomb («Wasting Away») e Sepultura («Refuse/Resist»), uma versão curta da «Get Up, Stand Up» e, para terminar em beleza, «Jumpdafuckup» e «Eye For An Eye».
Baixando consideravelmente o termómetro da testosterona, mas nem tanto o da devoção, os ALTER BRIDGE começaram ao som de «Silver Tongue», tema incluído no alinhamento de «Pawns & Kings», o mais recente álbum do grupo. Percebeu-se logo que o som estava equilibrado e alto, mas neste caso sem distorção, e que a voz de Myles Kennedy continua em grande forma – como sempre, de resto. Um olhar ao redor prova que, por esta altura, depois de terem esgotado salas respeitáveis por cá, já solidificaram uma base de fãs e quem vai assistir a um concerto do grupo é conhecedor da sua carreira. Isso notou-se nesta actuação, com os fãs a entoarem em uníssono a grande maioria dos temas. Na recta final, tivemos ainda direito a uma trilogia de luxo, com «Blackbird», «Pawns & Kings» e «Isolation» e, para terminar, as habituais «Rise Today», «Metalingus» e «Open Your Eyes» que, pela cara de todos os que vimos a afastarem-se da Altice Arena depois do final, deixaram os fãs totalmente satisfeitos.
Sem que nada o fizesse prever, a 14 de Julho de 2022, mais de duas décadas após terem subido a um palco pela última vez, os lendários PANTERA surpreenderam o mundo da música pesada com o anúncio inesperado de uma digressão mundial. Entretanto, a banda fez-se à estrada na América do Sul e nos Estados Unidos, aterrando por fim na Europa já este ano para uma sequência de actuações em nome próprio e participações em festivais. A 28 de Junho de 2023 — no primeira dia da edição inaugural do EVIL LIVE FESTIVAL, regressaram finalmente a Portugal. 29 anos após uma actuação inesquecível no, entretanto tristemente desaparecido, Pavilhão do Dramático de Cascais, a nova iteração do grupo – com o guitarrista Zakk Wylde e o baterista Charlie Benante (dos ANTHRAX), a substituírem os malogrados ‘Dimebag’ Darrell e Vinnie Paul, ao lado do vocalista Phil Anselmo e do baixista Rex Brown – subiu ao palco da Altice Arena, em Lisboa, e apresentou um alinhamento de catorze temas que deixou o público totalmente rendido. O quarteto deu o tiro de partida para esta muito esperada actuação com «A New Level» e, durante os 90 minutos seguintes, proporcionou a todos os presentes um proverbial desfile dos melhores temas que a formação “clássica” assinou enquanto se conseguiu manter junta.
Dúvidas restassem relativamente à validade deste regresso, foram rapidamente obliteradas. Fazendo jus ao que prometeram uns dias após terem anunciado as primeiras datas do regresso, aquilo a que assistimos foi a, mais que qualquer outra coisa, uma celebração do legado dos PANTERA e uma sentida homenagem aos irmãos Abbott. Desde o primeiro momento, foram exibidas nos ecrãs do palco filmagens de ‘Dime’ e ‘Vinnie’, muitas delas retiradas dos home videos que apaixonaram toda uma geração de metaleiros. O Sr. Anselmo, por seu lado, mencionou-os em mais de uma ocasião e ainda nos pediu para aproveitarmos o momento por eles. Soou genuíno, pelo menos. Se foi perfeito? Não foi. O próprio confirmou-o no final da actuação, com um bem-humorado “we all know this hasn’t been a perfect show”. No entanto, foi um final de primeira noite de EVIL LIVE FESTIVAL muito bem-passado, com os quatro músicos, todos em forma, a darem o seu toque a um alinhamento de sonho para qualquer fã de longa data.
Se satisfez toda a gente? Provavelmente também não. Sabemos, por exemplo, que o “nosso” José Almeida Ribeiro queria ouvir “pelo menos uns” temas do «The Great Southern Trendkill». Não teve grande sorte, mas pelo menos ouviu um desse álbum e não foi para casa de mãos a abanar em dia de aniversário. Certamente haverá mais gente por aí com queixas (afinal vivemos na época delas), sobretudo entre os indefetíveis, mas também não há como negar que conseguiram pôr de pé um alinhamento sólido, num inteligente registo de best of , sem tempos mortos e que ainda contou com dois apontamentos mais rebuscados, a «Suicide Note Pt. II» e a «Yesterday Don’t Mean Shit», igualmente recebidos de forma muito efusiva por uma plateia rendida ao poder dos PANTERA e da nostalgia.
Logo no início da actuação, ali ao nosso lado, um outro parceiro dos media, dizia que a banda não estava a “soar a PANTERA”. Umas canções depois e estava convertido, a fazer air guitar com entusiasmo. Querem melhor exemplo de que, neste caso, ganharam mesmo as canções ao invés das imperfeições? Verdade seja dita, com o fundo de catálogo carregado de temas incontornáveis no imaginário colectivo de qualquer metalhead que tenha crescido nos anos 90, os músicos não tinham sequer de fazer um grande esforço para deixarem toda a gente em êxtase. E foi o que se passou; com a «Mouth For War», com a «I’m Broken», com a «5 Minutes Alone», com a «Fucking Hostile» ou com uma celebratória «Walk» que, à semelhança do que se tem passado nos últimos concertos, contou com a presença de convidados – Max Cavalera, Wolfgang Van Halen e Mike DeLeon, o actual guitarrista solo dos SOULFLY.
Apoiado no melhor som deste primeiro, o quarteto ex-texano suou as estopinhas para servir o melhor concerto possível. Pese alguma falta de aproximação aos solos de ‘Dimebag’ – ou será mesmo puro desleixo? –, Zakk Wylde soou, como não poderia deixar de ser, a Zakk Wylde – os seus pinch harmonics invocaram de forma arrepiante o espírito certo e ecoaram na sala como um apelo deliberado à glória de “outros tempos”. A secção rítmica manteve-se tão compacta e impactante como nos lembrávamos, com Benante a fazer as vezes de Vinnie Paul com uma facilidade impressionante (é um dos bateristas mais talentosos, e injustamente ignorados, da sua geração) e Brown muito firme, a segurar o low end.
Anselmo, o foco de quase todas atenções, teve o público na mão desde o primeiro momento e, vocalmente, apesar da idade e das inerentes limitações que o uso e abuso das cordas vocais acarreta, também não comprometeu e as únicas vezes que os músicos desaceleraram foram a pausa para homenagear uma vez mais os irmãos, com a projecção de imagens enquanto se ouviu um excerto da versão gravada de «Cemetary Gates», e uma versão bem trippy da «Planet Caravan», dos BLACK SABBATH. Já no final, mantiveram o calor com um medley de «Domination» e «Hollow» e, em vez de fazerem a temida pausa para o encore, atacaram uma apoteótica «Cowboys From Hell».No final, ficou a nítida sensação de que, como os milhares de presentes na Altice Arena poderão comprovar, todas as perguntas levantadas anteriormente por fãs e especialistas em relação a este regresso foram respondidas ali: os PANTERA voltaram e não mostraram nada além de respeito por ‘Dime’, por Vinnie ou pelo legado de uma das bandas mais icónicas dos anos 90.
As fotos da galeria são do Jorge Botas.