Os ENTER SHIKARI tomaram de assalto o LAV – Lisboa Ao Vivo com um manifesto sónico de duas décadas. DEATHBYROMY abriu a noite com uma intensidade sombria e teatral antes da avalanche eletrorock britânica “incendiar” a capital.
Duas décadas após terem reinventado as fronteiras do rock eletrónico e do pós-hardcore, e uns longos doze anos após a última passagem por cá em nome próprio, os ENTER SHIKARI regressaram a Lisboa com uma força avassaladora. Na Sala 1 do LAV – Lisboa Ao Vivo, a banda de Rou Reynolds mostrou por que razão continua a ser uma das mais singulares e politicamente conscientes do seu tempo: um grupo que transforma o palco num espaço de libertação, catarse e reflexão, onde cada nota parece carregar um propósito bem definido.
Mas antes da tempestade britânica, houve um pouco de escuridão, alguma elegância e sangue novo. A norte-americana DEATHBYROMY abriu a noite com um espectáculo que misturou teatralidade gótica, pop distorcida e electrónica melancólica. Envolta em fumo e luzes vermelhas, Romy Madley — a figura central e criadora do projecto — desfilou pelo palco com a postura de uma anti-heroína de tragédia moderna. «SEE U ON THE OTHER SIDE» marcou o início de uma actuação e, com «XXXhibitionist», a cantora explorou a vulnerabilidade do desejo com uma entrega quase performativa.
Enquanto «I Kill Everything» e «Crash» elevaram a tensão com batidas industriais e vozes desgarradas, a sequência «City of Angels» e «LITTLE DREAMER» trouxe um contraste entre o glamour decadente e uma confissão íntima, num registo que oscilou entre Billie Eilish e Nine Inch Nails, sem nunca soar derivativo.





«Burn This City» e «DIE FOR YOU/BDSM», com um peso físico quase clubber, chegaram para provar a capacidade que tem para dominar o espaço sonoro com ferocidade e sensualidade, mantendo a plateia em suspenso antes de «Hellhound» e «Guerra» subirem a fasquia, com batidas corrosivas e uma entrega vocal visceral. O encerramento, com «No Mercy» e «Pray to Me», confirmou que Romy é muito mais do que uma promessa sombria da pop alternativa: é uma performer em total controlo da sua narrativa.
No entanto, o ambiente criado pela primeira parte foi apenas o prelúdio para o turbilhão emocional que se seguiu. Quando os ENTER SHIKARI surgiram em palco ao som da intro «Bloodshot (Coda)», a sala explodiu em aplausos e gritos. Logo com «Bloodshot», ficou claro que a noite seria intensa: as luzes dispararam em feixes multicoloridos e o baixo de Chris Batten reverberou como uma pulsação colectiva.
Rou Reynolds, carismático e incansável, tomou o microfone e, entre saltos e gestos coreográficos, gritou: “Shall we test out this sound system?” — e Lisboa respondeu em uníssono. «{ The Dreamer’s Hotel }» fez o chão tremer com a sua mistura de punk, techno e ironia social, seguida de uma «Anaesthetist» que, uma década depois do seu lançamento, soa ainda mais actual: uma crítica feroz à mercantilização da saúde pública, pontuada por um breakdown demolidor.
A seguir, «Live Outside» e «satellites» mantiveram o equilíbrio entre energia e emoção, com o público a cantar cada verso. A intensidade visual do espectáculo — lasers verticais, cubos luminosos e ecrãs que projectavam imagens em constante mutação — amplificou o impacto das músicas. Durante «THE GREAT UNKNOWN», o palco transformou-se num verdadeiro universo digital, enquanto «Juggernauts» ganhou um momento de introspecção, com Rou sob luz azul e aplausos.


















O concerto prosseguiu com uma sequência demolidora: «It Hurts», «Arguing With Thermometers» e «Destabilise» — uma trindade que condensou a filosofia da banda: a fricção entre caos e clareza, entre festa e revolta. O público, já em delírio, reagiu com dança e coros, pois claro. E, como se isso não fosse suficiente, «Sssnakepit» transformou a Sala 1 num híbrido de rave e sala de concertos rocl, com o ecrã a exibir o clássico jogo da serpente em loop, antes de «Jailbreak» incendiar definitivamente o espaço com a sua mensagem de libertação: “Inside of you there’s a revolution waiting to happen.”
«Rabble Rouser» e «Havoc B» funcionaram como descargas de energia pura, antes da inevitável «Sorry, You’re Not a Winner», o hino que catapultou a banda para o culto em 2006. As palmas sincronizadas ecoaram como um ritual de comunhão entre os ENTER SHIKARI e os fãs e, por essa altura, o LAV já era uma massa em erupção. «The Last Garrison», com o seu refrão triunfante — “Can you hear the war drums?” —, encerrou a primeira parte do concerto com um sentimento de vitória partilhada.
Para o encore, os ENTER SHIKARI guardaram dois momentos antagónicos e também complementares. «…Meltdown» reabriu as hostilidades com o peso de uma descarga eclétrica — corpos a dançar, lasers a rasgar o fumo, toda a sala a vibrar em uníssono. E, finalmente, a derradeira «A Kiss For The Whole World x», que fechou (e coroou) a noite com uma mensagem de esperança e renascimento. As projecções nos ecrãs transformaram o LAV – Lisboa Ao Vico num universo em expansão, encerrando o espectáculo em apóteose.
Resultado: durante cerca de duas horas, os ENTER SHIKARI provaram que continuam a ser uma anomalia necessária no panorama musical contemporâneo: uma banda que desafia géneros e expectativas, mas que nunca sacrifica a sinceridade da ligação com quem os ouve. Rou Reynolds e os seus companheiros — Chris Batten, Rob Rolfe e Rory Clewlow — mostraram que, para os ENTER SHIKARI, crescer não significa abrandar. Significa, antes, saber canalizar o caos. E ontem, em Lisboa, esse caos foi sublime.











