DEVIN TOWNSEND + KLONE + FIXATION @ Cineteatro Capitólio, Lisboa | 18.03.2023 [reportagem]

Que nos perdoem as duas bandas de abertura, mas é mesmo apenas por profissionalismo de reportagem, e até mesmo respeitando o dilúvio de “boa onda” que se abateu sobre o Capitólio ontem à noite, que vamos gastar algumas linhas com elas. Não só roçaram apenas a mediania, na melhor das hipóteses, mas acima de tudo a presença de um artista maior como que terá ofuscado tudo o resto à sua volta. Mas o próprio artista maior em questão haveria de querer que respeitássemos a integridade de todo o espectáctulo, portanto cá vai. Início de festa ainda bastante cedo, meia hora depois da abertura de portas, com os Fixation. Rapazotes noruegueses penteadinhos e asseados, tal como a sua música: polida, modernaça e inofensiva. Desde a postura americanizada do vocalista Jonas W Hansen até à forma óbvia e by the book como as malhitas insípidas de rock genérico se vão desenrolando, tudo neste pessoal soa a seguro, a radio-friendly, a empacotado. É banda do TikTok, digamos assim meio à velho a gritar para as nuvens, e terá o seu público, obviamente, como a recepção simpática por parte de vários presentes assim o mostrou. Noutra noite, mais convencional, sem o backdrop da criatividade e do fora-da-caixa como esta, talvez não tivessem soado tão desajustados. Por nós, sinceramente, mais valia termos estado mais meia hora na conversa à espera dos Klone. Bem melhores os franceses, uma banda já com outro traquejo também, com origens no final dos anos 90, e um percurso já vasto no desenvolvimento da sua forma peculiar de interpretação de peso musical. Atirou-se várias vezes com o termo “prog” para cima deles ao longo dos anos, mas de progressivo há efectivamente pouco. Grooves, isso sim, há com fartura. Riffs anafados, ritmos densos e frequentemente a meio tempo, tudo bases sólidas e fortemente atmosféricas para a excelente voz planadora e expressiva de Yann Ligner. A espaços, nos momentos em que melhor conjugam o peso, a melodia e a atmosfera, até fazem lembrar algumas das melhores bandas da fase dourada do “dark metal” finlandês, como os Fall Of The Leafe (em particular), por exemplo. Excelente assomo final com uma cover de Björk («Army Of Me») e a magnífica «Yonder», que até tiveram direito ao baixista Enzo Alfano ter ido tocar para cima da grade do photopit.

E pronto, a parte mais difícil já estava feita, que era a espera. Porque desde a altura em que o tal artista maior, um senhor canadiano de 50 anos com gosto dúbio nas suas vestimentas, cuja vida se resume bem por uma mistura de fart jokes e terror existencial (tudo descrições do próprio durante as várias intervenções), subiu ao palco na companhia da sua absurdamente talentosa banda, passou tudo a correr. O tempo voa quando nos estamos a divertir, e para lá de toda a filosofia que possamos estar aqui a discutir agora, esse é o intuito principal de um concerto do Devin Townsend, e é aliás a primeira coisa que ele nos diz antes de se lançar pelo quase-tema-título («Lightworker») do seu último álbum («Lightwork») adentro: “let’s have some fun!” Não quer isso dizer que não tenha havido peso a rodos, que houve, até um tema dos Strapping Young Lad foi aliás desenterrado no final da actuação. Não quer dizer também que não tenha havido mensagens significativas transmitidas, profundidade emocional ou até mesmo períodos de seriedade. Não se tratou só de uma joke band a fazer palhaçadas, apesar de muita palhaçada ter de facto ocorrido. O que quer dizer é que o Devin tem noção do equilíbrio que todos precisamos nesta altura tão delicada da nossa existência, com crises quase diárias a deflagrarem à nossa volta no mundo inteiro, desde o nível mais microscópico das nossas vidas até às grandes questões planetárias. Sempre soube, aliás, numa carreira marcada por um positivismo inteligente alicerçado na criatividade delirante, mas agora parece que essa noção ainda está mais refinada. Ele percebe aquilo que de arte e de artistas, mas também de entertainers, mais que nunca. Para ilustrar esta ideia, basta fazer notar o número de crianças que estavam presentes com os seus pais no Capitólio, e mais, nenhuma delas com presença passiva. Tal como o rapaz a quem cedi com todo o prazer o meu lugar junto da grade, que o próprio Devin viu a certa altura e lhe chamou entusiasticamente “that little guy!“, todos os pequenotes que ali se encontravam estavam nitidamente a adorar tudo o que se passava, com claro conhecimento prévio das músicas. Mesmo que algumas nuances lhes passem ainda ao lado, e ainda bem, o Devin consegue ter essa universalidade e esse tipo de apelo também, e claramente que não é só pela bonecada que continua a polular por palco e público nas suas actuações. Nesse capítulo, já agora, desta vez, para além do homem de cabeça de relva que nos mandava não fumar e dos vários Ziltoids na audiência, houve a presença importante de um polvo de peluche, que “tocou” teremim (uma novidade que esperamos seja mais explorada no futuro – o teremim, não necessariamente o polvo!) a meias com o canadiano durante a delirantemente alienígena «Dimensions».

Pelo meio de muitos elogios à cidade de Lisboa que passou o dia a explorar, foram também várias as menções à sua actual banda, e se já é costume Townsend rodear-se de excelência, a verdade é que temos mesmo que fazer menção ao grupo de verdadeira excepção que montou desta vez. O baterista Darby Todd (que já tocou com Gary Moore, Joe Lynn Turner, Robert Plant), o baixista James Leach (dos Krokodil e dos SikTh, e ex-Messenger) e acima de tudo o “everything elseMike Keneally (que entre muitas outras actividades brilhantes, fez parte da banda de Frank Zappa), que tocou guitarra eléctrica, acústica, piano e sintetizador, por vezes mais que um ao mesmo tempo (!), são músicos de um nível alucinante, e compreende-se que Townsend fale abertamente do bom que é poder tocar finalmente estas músicas “como devem ser tocadas” na companhia deste pessoal. Nota também para o técnico de som e para as excelentes condições do Capitólio, que nos forneceram um dos melhores sons que já ouvimos num concerto. Volume, peso, clareza, precisão. Tudo lá.

Parece ter sido realmente a melhor altura para apanharmos este concerto. Os adiamentos a que foi sujeito parecem ter convergido tudo a este ponto – com esta banda, e com os recentes «Empath» e «Lightwork» a fornecerem um conjunto de temas (seis no total, 2 + 4 respectivamente) que atribuem toda uma dimensão emocional ao setlist que eventualmente lhe faltava antes, dá mesmo toda a sensação que apanhámos o homem num ponto altíssimo da sua carreira, toda ela passada nas alturas já de si, diga-se. Tudo é equilíbrio. Como já referimos, nesta actuação cuidadamente planeada, nunca se resvala para o disparate vazio, nem nunca se deixa a angústia e o drama pesar-nos no coração por muito tempo. Por cada refrão crooner emocionado da «Why?», há um juvenil “suck my balls!” rosnado com gosto antes de lançar uma quantidade de riffs esquizofrénicos. Por cada evocação dos que já cá não estão na sentida «Spirits Will Collide», há uma «Bad Devil» explosiva que só dá mesmo para dançar à maluca. Por cada polvo a tocar teremim, há uma rendição sumptuosamente comovente das partes mais poéticas de «Lightworker»: “May your heart be filled with peace / May your soul sleep well / You and me and this melody” – e no final de contas, foi mesmo esse o efeito. Até o final apoteótico com o tema dos Strapping Young Lad, que tanto deleite provocou naquela franja do público mais velhota e adepta do extremismo musical que delirou com álbuns como «City» ou «Alien» nos 90s/00s (bem se viu a vossa agitação capilar!), não destoou do amor todo espalhado pelos 75 minutos anteriores, cabendo a «Love?», lá está, fechar uma das melhores noites dos últimos tempos com chave de ouro maciço.

ALINHAMENTO: 01. Lightworker | 02. Kingdom | 03. Dimensions | 04. Why? | 05. The Fluke | 06. Deadhead | 07. Deep Peace | 08. Heartbreaker | 09. Spirits Will Collide | 10. Truth | 11. Bad Devil | Encore: 12. Call Of The Void | 13. Love?

FOTOS: Estefânia Silva