Bad Religion

BAD RELIGION + SUICIDAL TENDENCIES + MILLENCOLIN + DEVIL IN ME + BLOWFUSE @ Sala Tejo, Lisboa | 14.05.22 [reportagem]

Quem é que aqui é old school?“, perguntou Greg Graffin, vocalista dos aniversariantes (+2) BAD RELIGION, momentos antes de a banda disparar «We’re Only Gonna Die», nada menos do que o primeiro tema do primeiro álbum da banda californiana, «How Could Hell Be Any Worse?», editado em Janeiro de 1982 (e calha bem, fica esse trabalho a fazer os redondos 40 anos de celebração, em vez dos da existência da banda, que a pandemia não permitiu celebrar na altura certa). Não será exagero dizer que para aí dois terços da Sala Tejo, cheinha com milhares de pessoas ao rubro, suadas e cansadas mas felizes, levantou o braço aos gritos. Os que não levantaram, riram-se e pensaram “eu também sou, mas sou cool demais para dizer que sim.” E era verdade. Pelo menos ali dentro, naquela altura, era verdade. Tivessemos nós quinze ou 65 anos, a discografia toda de todas as bandas ou a ouvi-las pela primeira vez, ali, naquela altura, depois da maratona de punk, hardcore e crossover do mais clássico possível (again, independentemente da idade das bandas) que já tínhamos atravessado, era impossível não nos sentirmos old school. Foi o peso destes movimentos, dos ideais que carregam, da história que os fez chegar a este ponto, que carregámos nos ouvidos e no coração durante quase seis horas, e isso deixa mossa, claro que sim. Mossa da boa, até porque toda a gente correspondeu às suas expectativas próprias. Se há algo a apontar a épica noite lisboeta, talvez o sentimento um pouco “apressado” com que se ficou do concerto de algumas das bandas, especialmente das duas maiores que actuaram em último lugar, nitidamente a operar numa janela de tempo algo restrita. “Culpa” eventualmente do número de bandas que tocaram antes (cumprindo, numa organização exemplar da Hellxis, os horários à risca, diga-se), com os “nossos” Devil In Me a serem adicionados em relação ao cartaz da data espanhola anterior, por exemplo, mas também é verdade que não retiraríamos um minuto de cada uma delas, portanto, pouco haveria a fazer. Para além disso, essa situação também pode ter tido o condão de aumentar a urgência e condensar as prestações ao absoluto melhor, retirando o filler (nitidamente, os Suicidal Tendencies beneficiaram disso), mas no caso dos Bad Religion, e particularmente tendo nós o privilégio de comparar este concerto com o de Maio de 2019, há que dizer que esse foi mais orgânico, com um ambiente diferente. O próprio setlist dessa altura, sem necessidades “celebratórias”, foi também ele, ironicamente, mais equilibrado, passando por alguns álbuns e temas que desta vez não foram evocados, pelo que nesse confronto directo específico, 2019 ganha por um bocadinho assim. Mas isso são picuinhices de quem está aqui sentado a racionalizar coisas no dia seguinte, convenhamos. Lá dentro, ninguém, nem este que vos escreve, estava com problemas desses. Desde os primeiros acordes da sempre inspiradora «Generator» até ao encore com «American Jesus» e «Fuck Armageddon… This Is Hell», com pontos altos do calibre de «Punk Rock Song», «Los Angeles Is Burning» ou, talvez surpreendentemente, a beleza que foi a sala inteira a cantar a melodia melancólica do refrão de «Sorrow», os Bad Religion foram aquilo que sempre foram ao longo destes últimos 40 (+2) anos – uma banda inspiradora, entusiasmante, inteligente e eloquente, cheia de grandes canções imediatas, mas com mensagens intemporais, sempre actuais social e politicamente (infelizmente), que nos deixam sempre banhados em suor, mas a pensar ao mesmo tempo. E se é giro ver o pessoal que já cá andava quando eles apareceram a cantar tudo, mais giro ainda é também ver miúdos de tenra idade nas bancadas a cantar as mais emblemáticas, cheios de vontade de fugir dos pais que os levaram (good parenting!) e vir cá para baixo armar estrilho. Melhor ambiente, é difícil.

E apesar de serem os Bad Religion os cabeças-de-cartaz, os aniversariantes (+2), e a razão disto tudo, a verdade é que em termos de “estou cá para ver esta banda”, diríamos assim a olho – avaliando por exemplo a reacção aos nomes que o Oscar Puig, vocalista dos catalães Blowfuse, que tocaram primeiro, ia perguntando se estávamos entusiasmados para ver – que a coisa estava 50/50 com os Suicidal Tendencies. Claramente uma banda mais “de época”, tendo marcado a juventude de muitos de forma indelével, mas que não manteve, de todo, a relevância da sua era dourada nas décadas que se seguiram. Ainda por cima apresentando-se com uma formação de palco meio descaracterizada, só com o guitarrista Dean Pleasants a acompanhar o imparável Mike Muir da formação “a sério”, completando-se este quinteto live com Ben Weinman na guitarra, Brandon Pertzborn na bateria, e um tal de Tye Trujillo, sim, filho desse mesmo que estão a pensar (que fazia parte da banda da primeira vez que os Suicidal vieram a Portugal, abrindo para… o seu empregador actual!), da altura dos seus imberbes dezassete anos, a dar show no baixo , podia-se pensar que estava tudo alinhado para dar barraca. Mas… todos estes “contras” se desvanecem assim que começa a soar «You Can’t Bring Me Down», e durante um set explosivo, em que só um problema técnico que estragou a «Freedumb» os conseguiu parar durante um minuto, foi como voltar 25/30 anos atrás no tempo, com desfilar de clássico atrás de clássico, sempre pontuados pelo discurso motivador e P.M.A. do Muir, que apesar de já o sabermos quase de cor palavra por palavra, é sempre atirado com uma convicção desarmante. E repetimos – o homem, aos 59 anos, é um dinamo de energia incontrolável capaz de envergonhar qualquer adolescente hiperactivo. Sem tempo para mais que os clássicos obrigatórios, e ainda bem, o crowdsurfing não parou um segundo (até o Ben Weinman, para terror do pessoal da segurança, decidiu vir cá para baixo e juntar-se à festa enquanto tocava), o ponto de ebulição foi atingido com uma selvagem «War Inside My Head», e a temperatura da Sala Tejo deve ter subido uma boa meia dúzia de graus ali naquela horinha entre as 21:10 e as 22:10.

Temperatura essa que, sejamos honestos, já estava a níveis bem elevados, depois das emoções trazidas pelas “bandas de abertura”. Assim mesmo, com aspas, porque o sentimento de igualdade e de apoio mútuo foi notório nos discursos de todos os músicos que tiveram a palavra em palco. Mesmo quando o Poli dos Devil In Me deixou escapar que os Bad Religion já estão “cheios de dólar” e que temos é que apoiar as bandas pequenas, mas tudo bem. Foi meio na brincadeira, e percebe-se a intenção. Até porque os Blowfuse, que abriram a noite, bem teriam merecido um bocadinho mais de apoio, lá está. Uma promoção de cerveja a 50 cêntimos pareceu mais apelativa a largo número dos que tinham bilhete, e ainda que a sala estivesse longe de estar vazia durante a prestação dos simpáticos catalães, ainda os obrigou à entediante rotina habitual de pedir à malta para se chegar um bocadinho mais para a frente, vá lá, por favor. Mesmo em condições longe de ideais, ainda conseguiram criar algum movimento. Prestes a completar uma década de existência, nunca serão a melhor banda do mundo, mas têm algumas malhitas orelhudas, como a nova «State Of Denial», de refrão inegável, ou a furiosa «Radioland», do álbum «Couch» de 2014, que encerrou a sua actuação da melhor forma.

A representação nacional ficou, como tínhamos dito, a cabo dos Devil In Me, “uma banda de hardcore tuga”, como sucintamente descrita pelo seu frontman, e que por entre sentidos apelos ao “amor e paz” (as últimas palavras proferidas por Poli antes de abandonar o palco), de referências e dedicatórias a outras bandas da nossa cena como Choque Frontal (“a banda mais punk de Quarteira”), Besta, Simbiose, Bas Rotten e outras, lá foram disparando os seus temas pesados e de impacto instantâneo. O tríptico final, com «Awake», «Knowledge Is Power» e «Soul Rebel», foi particularmente intenso, e por si só já justificaria um nha-nha-nha-nha! provocatório à malta de Bilbao, onde decorreu a primeira data desta digressão, por não terem lá tido esta banda no cartaz. Era o Greg Graffin pegar neles e levá-los no autocarro para o resto do caminho, que bem o justificavam.

O ponto médio da noite foi representado pelos suecos Millencolin, e representam bem essa posição que pode ser algo ingrata. Não tão velhos, nem tão importantes, como os headliners, mas ainda assim donos de uma carreira já respeitável (30 anos, já!) e com a sua própria influência considerável no punk mais melódico e na cena do skate punk em particular, tiveram uma actuação enérgica. Recheada também de alguns dos seus clássicos, como alguns dos retirados do mítico «Pennybridge Pioneers» (ainda hoje o dominante das suas setlists) como «Fox», «Penguins & Polarbears», «Pepper» ou, claro, a “assinatura” «No Cigar» a fechar. A boa disposição reinou do princípio ao fim, especialmente quando foi altura de Mathias Färm apresentar os demais membros da banda com humor “refinado”, digamos assim. É a boa onda natural de uma banda que nunca teve uma mudança de formação. Em 30 anos. Dá que pensar, não dá?

Um dos meios de comunicação do país vizinho (o El Correo, o seu a seu dono) que cobriu a tal primeira data desta tour dos Bad Religion em Bilbao deu destaque ao “ambiente festivaleiro” que se viveu na altura. Aproveitamos para pedir emprestada a inspirada descrição, já que é perfeita para ilustrar o que se viveu nesta tarde/noite da Sala Tejo. Só é pena que não seja mesmo um festival e que hoje não seja o segundo dia de mais três ou quatro.

FOTOS: Solange Bonifácio