AMPLIFEST [FDS1] @ Hard Club, Porto | 07-09.10.2022 [reportagem]

DIA 1

Eis-nos finalmente chegados ao primeiro dia de um regresso demasiadas vezes colocado em suspenso! Já com os devidos beliscões dados na pele para nos certificarmos que o Amplifest estava efectivamente de volta e logo com um dos cartazes mais ecléticos e ambiciosos da sua história, o pontapé de saída foi dado por… ?. É verdade, era só isso que constava do cartaz para a primeira banda do palco Bürostage (a sala 1 do Hard Club), um concerto surpresa que, para gáudio de muitos, se revelou à entrada da sala ser nada menos que A.A. Williams. Exactamente um mês depois de ter visitado Lisboa (e um mês e um dia no caso do Porto) na companhia dos Mono, a cantautora britânica voltou a arrebatar corações com a sua mistura única de estilos.

Complementando este ambiente experimental e “fora da caixa” que tão bem ilustra o Amplifest, a estreia do Beerfreaks Stage (a sala 2 do Hard Club) coube a Jo Quail, que de uma forma completamente diferente chegou exactamente ao mesmo resultado que a sua antecessora de horário – corações arrebatados pela virtuosa violoncelista autora de «The Cartographer», que introduziu com classe ímpar o seu instrumento na galeria da música pesada de forma totalmente natural.

Falando de peso, e depois da subtileza e até delicadeza com que estas duas artistas maiores o entregaram, seguiram-se os Process Of Guilt, que estão do outro lado do espectro da “delicadeza”. Volvida cerca de uma década desde a última aparição no festival portuense, e agora com o novíssimo «Slaves Beneath The Sun» como principal pano de fundo, é sempre um prazer ver a banda de origem eborense arrasar tudo e todos com o seu pendor arrastado, um teor lamacento que se vê agora particularmente ainda mais mecanizado e desconcertante, além da pontual revisita a «Black Earth». A fasquia ficava bem elevada logo tão cedo no fim-de-semana.

Mais uma curta viagem para a sala ao lado, e a estreia em Portugal do duo canadiano Vile Creature – tornado trio em formato ao vivo, com a adição de Adam McGillivray na bateria e delegação de Vic apenas para as vozes –, também devido à partilha emocional de KW num ambiente que se sente entre família, terá sido uma das primeiras grandes surpresas do palco mais íntimo, com as duas últimas músicas de «Glory, Glory! Apathy Took Helm!», também últimas desta apresentação, como montra perfeita entre o equilíbrio de delicadeza e peso bem demarcado à là Thou.

O ponto alto emocional da noite, porém, terá sido proporcionado pelos Amenra, num formato invulgar. Por muitas vezes que nos visitem, os belgas serão sempre um dos actos mais aguardados, ainda mais quando recebidos por quem lhes tem sido um verdadeiro porto seguro. Assim, foi agridoce (ainda que oportunamente contornada) a notícia que Tim De Gieter, baixista da banda, não poderia vir por não recuperar a tempo de uma cirurgia urgente, circunstância que reverteria a performance da banda ao formato acústico. Não foi a possibilidade almejada de sentir a pujança de «De Doorn» em toda a sua força, mas foi, ainda mais, a chance de nos sensibilizarmos com uma banda despida dos seus espinhos: covers de Townes Van Zandt, o clássico «Razoreater», a nova «De Evenmens», a «Parabol» dos Tool, metade do EP «Afterlife» e o desfecho em tributo com «Song To The Siren», eterna música de Tim Buckley “apropriada” pelos This Mortal Coil, foram razões mais do que suficientes para um constante eriçar da pele.

Mantendo esta toada “solitária”, desta vez literalmente, sozinha em palco, Madeline Johnston, aka Midwife, não precisa de mais do que uma guitarra e dos seus pedais de efeitos (também na voz) para construir um esqueleto shoegaze, à qual vai colocando e tirando tecidos, ora mais com a negritude do slowcore ora com a leveza do dream pop. Hipnotizados pela melancolia e transportados pela nostalgia, a mão cheia de temas de «Forever» e «Luminol» encantou pelo minimalismo.

Após tantas edições pautadas por uma curadoria peculiar no que toca ao espectro da música mais extrema, não deveria soar assim tão extraordinariamente fora da caixa a aparição de um projecto de hip hop no cartaz. Dälek, o duo de Nova Jérsia composto por MC dälek e Mike Mare (a substituir The Oktopus, após regresso de hiato em 2015), tem a particularidade de, dado o experimentalismo, assustar os seus congéneres pelas batidas sombrias e barulhentas, enquanto encanta tantos outros precisamente pela disparidade de soar à fusão de Public Enemy com uma caixa de ritmos orquestrada pelos Einstürzende Neubauten. Numa carreira com quase tantos lançamentos como anos de experiência, embora o ênfase tenha estado no último «Precipice», fez-se história a partir do momento em que se manteve o espírito do headbang, apenas o modelando a cadência serpenteada das rimas.

DIA 2

Entrámos no segundo dia pela mão do doom metal carregado de peso e sentimento dos norte-americanos Pallbearer, banda que já por aqui havia passado em 2014, com «Foundations Of Burden» acabadinho de sair, e que, em 2022, chega com mais dois discos no currículo, sendo «Forgotten Days», editado em 2020, o principal foco de uma actuação tão curta e vespertina, quanto emotiva e contundente.

O mote estava dado, e de que maneira, para um dia absolutamente memorável, com os britânicos Telepathy a tomarem de assalto o Beerfreaks Stage numa toada igualmente negra, envolvente, cinemática, mas a dever muito mais ao sludge do que ao doom. O denso manto negro que pairava na esmagadora aura do antigo Mercado Ferreira Borges contrastava com o dia aprazível e solarengo lá fora, num contraste que torna este um evento especial e uma experiência única, repleta de momentos inesquecíveis como a actuação dos norte-americanos Elder. Com o foco no brilhante «Omens» e com uma sala quase cheia em pleno Sábado à tarde, embarcámos numa viagem pelo psicadelismo do stoner, do rock, do doom, e de tudo aquilo que transborde talento e sentimento pelas mãos de quatro músicos exímios. Com «Halcyon» a afirmar-se enquanto pináculo da viagem, foi com espíritos em alta e energias contrabalançadas que saímos do concerto dos Elder, já na hora de mergulhar no peso do sludge e post qualquer coisa dos norte-americanos Irist. Roçando o death metal, tal a muralha sonora que a banda ergueu numa sala apinhada de uma multidão curiosa sobre o que daqui poderia sair, o que saiu foi uma prestação emotiva, conduzida por Rodrigo Carvalho, vocalista brasileiro da banda, verdadeiramente emocionado e possuído. Porém, a sonoridade da banda peca por não carregar aquele elemento distintivo e aquela personalidade vincada que a distinga no meio de tantas outras parecidas, levando a que a monotonia se instalasse algures numa prestação, ainda assim, muito competente.

Era então chegada a hora de um dos grandes nomes do dia e que mais entusiasmo e curiosidade causava nos muitos que já conhecem e seguem Brutus. O power trio belga tem vindo, ao longo dos últimos anos, a ganhar notoriedade pela forma inspirada e visceral com que desconstrói o hardcore, o post-rock, o punk, o grunge, o metal e tudo aquilo por onde resolvem atirar-se com uma guitarra, um baixo e uma força da natureza na pessoa de Stefanie Mannaerts, que assegura de forma estrondosa e contagiante a bateria, ao mesmo tempo que canta, que grita, que se emociona, que emociona os outros e que expurga, com alma e devoção, cada palavra e cada melodia. «Nest», o segundo álbum da banda, dominou as atenções, com temas já incontornáveis como «War» – a ecoar nas vozes do público -, «Space», «Cemetery» ou a inevitável «Sugar Dragon» a esgotar cada lágrima e cada gota de suor ao cair do pano.

Corações cheios, almas lavadas, corpos cansados, prontos para um momento de algum relax e introspecção na companhia de O Gajo e da sua viola campaniça, assinando um daqueles momentos que, não fosse este o conceito Amplifest, pareceria deslocado de tudo o resto. Mas soube tão, mas tão bem esta viagem por dedilhados sem fim e por melodias e atmosferas carregadas de sentimento e significado. O Gajo foi o apaziguador de excelência para o que viria a seguir, somente um dos momentos mais intensos vividos em qualquer edição do festival, o que, por si só, é elevar a fasquia bem alto. Os autores da proeza foram os finlandeses Oranssi Pazuzu, um dos nomes maiores do cartaz deste ano e um dos que mais entusiasmo gerava. Uma assombrosa e desconcertante prestação centrada em «Mestarin Kynsi», um disco marcante editado em 2020 e que, por sua vez, deu o mote a uma das mais marcantes actuações em contexto pandémico, transmitida via streaming, assumindo-se como a banda-sonora perfeita para os distópicos tempos então vividos. E se através de um ecrã o impacto gerado por esta malta já havia sido deveras assinalável, imaginem a experiência gerada pelo formato ao vivo, em carne e osso, com toneladas de decibéis a invadir-nos o corpo e a mente! Em pouco mais de uma hora, o quinteto dilacerou por completo quem com ele quis embarcar numa viagem tão extrema quanto psicadélica, tão alienada quanto visceral, tão sensorialmente exigente quanto mentalmente plena e desafiante. Enormes músicos, figuras que se permitem possuir por uma qualquer entidade extra a tudo isto, capazes de nos elevar a uma qualquer galáxia distante para, logo de seguida e sem misericórdia, nos puxarem para o mais profundo e lamacento buraco negro, sem complacência, mas com um sorriso parvo no rosto com que nos deixaram após tamanha sova e viagem aos quintos dos infernos.

Depois desta intensidade, já pouca predisposição restava para experiências demasiado exigentes, pelo que o post-punk simples, directo e ligeiramente adocicado pelo gothic rock da escola Sisters Of Mercy dos norte-americanos Fotocrime caiu na perfeição enquanto banda-sonora para o regresso à terra. O trio liderado pelo norte-americano Ryan Michael Patterson trouxe na bagagem «Heart Of Crime», editado há pouco mais de um ano, e, sem surpreender, arrancou uma prestação segura, consistente, envolvente, mas limitada a um espectro que tem pouco para onde evoluir e esticar fronteiras. Soube bem.

Já os Putan Club existem precisamente para desafiar fronteiras, para ultrapassar limites, agitar consciências, derrubar dogmas, preconceitos e formatações, deixando em cada prestação um manifesto de irreverência e libertinagem que envolve, literalmente, o público num reboliço ao qual é difícil ficar indiferente. O palco transfere-se para a plateia e é no meio do público, ao mesmo nível, em perfeita comunhão que este duo meio francês, meio italiano, mas do e para o mundo inteiro vai debitando aquilo que lhes passa pela cabeça, desde o rock ao techno, do jazz ao punk e à world music, resultando numa experiência deveras contagiante e que ousou desafiar a resiliência dos resistentes de um dia longo e intenso que, ainda assim, não deixaram de fazer a revolução numa performance que convida e incita a isso mesmo. Melhor cair de pano para o segundo dia seria impossível.  

DIA 3

Depois da estreia em Portugal nessa longínqua data no Porto Rio, em 2009, os Wolves In The Throne Room já não regressavam ao nosso cantinho desde a edição de 2012 do (na altura) Optimus Primavera Sound. Agora, com quase o dobro de álbuns na bagagem, tiveram a sempre ingrata missão de fazer sentir o seu negrume enquanto alguma claridade do início da tarde ainda raiava – uma dificuldade que ultrapassaram com a classe do costume. As duas primeiras músicas do mais recente «Primordial Arcana» iniciaram o mote, no seu característico black metal de laivos atmosféricos, recuando progressiva e pontualmente a discos anteriores, terminando com o último tema de «Two Hunters», num ritual deveras homogéneo e extraordinariamente intenso.

A falta de percepção temporal, aquela espécie de sensação que andámos tanto tempo a boiar nestes últimos anos, ainda perdura quando se pensa que até há pouco tempo tínhamos sido visitados pelos franceses Birds In Row, na altura ainda relativamente frescos na apresentação do seu segundo álbum. Pois bem, isso foi em 2019, esse disco é do ano anterior, e o trio está na realidade prestes a lançar o seu terceiro longa-duração, apelidado «Gris Klein», cujo cartão de visita, na forma dos primeiros quatro temas, foi amplamente aprovado a julgar pela reacção do público, da qual até crowdsurfs se vislumbraram. Remate final entregue à familiaridade de temas do já apontado «We Already Lost The World», incluindo o encore de «We Vs. Us», apenas intercalados pelas intervenções reivindicativas do guitarrista e vocalista Bart “B.” Hirigoyen que, no fim, nos trazem o conforto de valorizarmos o mais importante que todos temos: uns aos outros.

Logo de seguida, uma daquelas surpresas, completamente desconhecidas a início, que primeiro apelou à curiosidade e depois agarrou pela espontaneidade: embora o colectivo espanhol Tenue tenha apenas cerca de cinco anos de existência, a sonoridade praticada tem por base aquele screamo da velha guarda, de aromas orquídeos, com aproximações tanto a uma costela neocrust como à ambiência exploratória do post rock, sem esquecer um ou outro momento matematicamente mais angular.

Os Caspian são mais um dos inúmeros exemplos de bandas que tem na Amplificasom o seu refúgio, depois de uma última visita na edição de 2016 deste mesmo festival, e para quem tem a felicidade de os acompanhar há mais de uma década, não deixa de ser extremamente gratificante ver o crescimento e a maturidade com que o colectivo de Beverly, Massachusetts, se apresenta: um verdadeiro espectáculo, ainda que assente no aparente minimalismo, de jogos de luz e strobes a contrastar com uma densa massa de fumo (ou nevoeiro, praticamente), criando a ilusão dos músicos aparecerem ou desaparecerem, alternadamente ou em conjunto, perfeitamente alinhada com a própria música, as suas harmonias e crescendos, elevando o post rock do quinteto da sua suavidade de arranjos aos ritmos vincados pela gravidade das três guitarras.

Uma das referências maiores para este primeiro fim-de-semana era a banda que fechou o palco maior, os Cult Of Luna, muito fruto de uma longevidade que já quase alcança um quarto de século pautada por uma qualidade criativa sempre bem elevada, os suecos foram mais um dos casos de um regresso há muito esperado, cuja última presença no nosso país fora precisamente na edição de 2014. No entanto, como nas melhores relações de amizade, a distância, física e temporal, rapidamente se ata como se de uma conversa interrompida se tratasse, onde a intimidade com o passado, essa história partilhada, dá espaço à imersão na novidade, à percepção que o tempo passa mas não muda – ou melhor, se efectivamente mudar, é também sinónimo de crescimento lado a lado. Johannes Persson e os seus cinco rapazes deram o tiro de partida com o primeiro tema do novíssimo «The Long Road North» – álbum bem recebido e que, diga-se, ganha alguma dinâmica no formato ao vivo –, sendo entre esse trabalho e o seu antecessor, «A Dawn To Fear», dado o principal destaque – eram, afinal, esses os assuntos que tínhamos, nós, o público, em falta. Ainda assim, como brinde pela saudade, houve também espaço para dois já clássicos intercalados, «I: The Weapon» e «Dim», resumindo toda a interpretação como uma excelente amostra da considerável categoria que uma banda consegue ter.

Para o fim, but not least, de forma alguma, desta longa análise dos primeiros três dias do Amplifest de regresso, deixamos dois dos maiores socos no estômago aplicados por duas figuras solitárias nas duas últimas actuações do palco Beerfreaks: primeiro, Patrick Walker, nome que por estes dias se confunde com 40 Watt Sun (o antigo mentor dos Warning deixou de ter propriamente uma banda e vai tendo colaboradores pontuais que o apoiam – ou não – em palco e em estúdio), que por entre rendições absolutamente divinas daqueles seus temas imortais que todos os seus fãs recebem como um membro da família, sejam mais recentes (a luminosa «Reveal» do mais recente «Perfect Light») ou mais antigos (a sempre impactante «Carry Me Home» do já longínquo mas sempre relevante «The Inside Room»), só não nos deixou a todos em mais lágrimas porque a sua postura em palco é de uma leveza e de uma boa disposição natural totalmente desarmante. Histórias antigas de tour, pormenores sobre os temas, piadas aqui e ali (“não pensavam que se iam rir tanto neste concerto, pois não?“), e público 100% conquistado – mesmo com uma guitarra “emprestada” porque o pickup da sua fiel companheira que viajou de Inglaterra decidiu morrer meia hora antes do concerto, nada há a apontar a esta singela hora de perfeição.

Actuação difícil de seguir, e a que só uma artista de nível sublime como a norueguesa Karin Park poderia estar à altura. Meio tímida no início, rodeada pela maquinaria vária de onde extrai batidas, texturas, loops, ambientes e demais sons maquinais que acabam a soar paradoxalmente orgânicos, a norueguesa vinda da Suécia foi gradualmente crescendo à medida que a sala, muito vazia no início, também foi enchendo. Quando demos por nós, e já depois de um adorável thumbs up do marido Kjetil Nernes que lhe veio trazer um cafézinho (e com quem, como sabem, divide os fantásticos Årabrot), o turbilhão Park tinha tomado conta de tudo, a sala cheia com gente ondulante ao ritmo das batidas, com a poderosa e expressiva voz da nórdica a preencher tudo e todos e a rasgar pelos temas fantásticos de (principalmente) «Private Collection», o novo álbum. No final, a confiança já era tal que nos disse que comprar-lhe uma t-shirt ou um disco era suportar “a nossa nova artista favorita“. E não é que tem razão?

TEXTO: Ricardo Agostinho / Pedro C. Silva
FOTOS: Geert Braekers