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RSD: A Grande Falácia do RECORD STORE DAY

Originalmente criado para bombear sangue no circuito de música independente, o RECORD STORE DAY (RSD) foi saqueado pelas multinacionais e pelos artistas mainstream, com a sua logística a consumir os parcos recursos que existem no tão proclamado regresso do vinil.

O Record Store Day foi fundando com um vigoroso espírito melómano, dando uma pedrada no charco, que originalmente permitia aproximar artistas e fãs, como servir de balão de oxigénio às velhinhas lojas de discos que teimavam em desafiar as grandes cadeias de cultura vendida ao metro.

A ideia persistiu até se institucionalizar e ser usurpada por aqueles que pretendia contrariar, as major labels, o mainstream e as grandes cadeias comerciais. Em 2021, numa carta aberta escrita ao The Guardian, Rupert Morrison, proprietário da Drift Records, deixou um testemunho de como o RSD estará a provocar mais danos que benefícios è rede de música independente que o fundou. Três anos depois, constatamos que pouco (ou nada) mudou. Podem ver a carta original aqui ou ler a tradução que propomos a seguir.

Mesmo na era do distanciamento social, imposto pela pandemia, o Record Store Day sobreviveu. Após a edição de 2020 ter sido cancelada – estava agendada para a altura em que o primeiro confinamento se impôs mundialmente – os promotores do evento encenaram datas de lançamentos separadas mais tarde, nesse ano e novamente em 2021.

Noutros países e nomeadamente no Reino Unido, viram-se alguns consumistas ansiosos a fazer fila às portas das lojas de discos, usando as já icónicas máscaras faciais, bem como casacos espessos e cachecóis para enfrentar o fresco das horas de pré-abertura; viram-se algumas notícias da praxe sobre como ‘o vinil está de volta’, no seguimento dos gestores patrimoniais de David Bowie e Prince terem inventado mais um artefacto anteriormente inédito.

No entanto, o que em tempos foi uma transfusão de sangue para o retalho físico, acabou por tornar-se um bando de abutres a pairar sobre os estabelecimentos que se pretendia ajudar originalmente.

Dirijo uma loja de discos independente que precede tanto o RSD como a internet. No início dos anos 2000, quando as lojas de discos foram dizimadas graças ao aumento de downloads ilegais, o RSD bombeou milhões de libras através de caixas registadoras e, sem dúvida, que cativou uma nova geração para o mundo da música física. O RSD é um acontecimento notável e os seus primeiros anos devem ser recordados como a revolução que foram. Mas 15 anos é muito tempo em tecnologia e retalho.

A partilha de ficheiros entre pares (peer-to-peer filesharing) prenunciou o download digital e o modelo de streaming. Os corajosos blogues de música evoluíram para lojas digitais multimédia. Mesmo as lojas de discos físicos mais idiossincráticas chegam agora a uma audiência global através da internet. O Record Store Day, entretanto, não se adaptou às realidades modernas da venda de música física.

Os mais críticos há muito que zombam da propensão do evento para discos novos e da falta de uma curadoria perspicaz. Este ano, o RSD oferece 411 novos lançamentos, um facto que devia deixar todos os que estão no ramo da música física a ranger os dentes. Graças ao Brexit e à pandemia, simplesmente não conseguimos fazer discos suficientes.

Há uma escassez internacional dos vários componentes necessários no fabrico de vinil, bem como um atraso exacerbado pelo sobrecarregado calendário de lançamentos pop do ano passado. Essa questão veio para ficar. Enquanto o vinil levaria normalmente 12 semanas a produzir, estamos agora a olhar para nove meses para uma edição limitadíssima de vinil de 12 polegadas.

Nem se mencione sequer a escassez de vinil colorido, o sangue vital do RSD. A abertura de novas fábricas de prensagem em Middlesbrough e Gotemburgo é motivo de optimismo, mas mesmo a sua capacidade acrescida é pálida em comparação com a procura.

Quando tive um vislumbre da dimensão do que estava em produção, sugeri nas redes sociais que o melhor para toda a comunidade discográfica teria sido parar um ano. Inevitavelmente, muitas pessoas responderam: “Se não gostas, não participes”. Mas esta é talvez a maior falácia actual do RSD. Mesmo as lojas que optam por não participar estão a sofrer a longo prazo, graças aos contínuos atrasos e escassez de stock, que são exacerbados pelo calendário de produção do RSD. A logística do evento afecta agora todos os meses do ano, passando por cima de campanhas cuidadosamente planeadas.

Temos penduradas pré-encomendas feitas online há 12 meses para álbuns adiados tão frequentemente que parece inútil tentar estabelecer uma nova e hipotética data de lançamento. As ramificações administrativas são desgastantes para as lojas e o impacto económico para os artistas e gravadoras independentes é devastador.

O périplo dos artistas por lojas – cruciais para promoção e vendas na primeira semana – é cancelado e adiado; os artistas falham as posições nas tabelas de vendas que previam; calendários de Verão inteiros dessas pequenas visitas estão a ser eliminados porque há demasiada incerteza sobre quando o produto físico se materializará.

O trabalho de uma loja de discos, nos seus termos mais simples, é vender discos. Fazemos parte de um ecossistema musical há muito estabelecido e agora, em grande parte devido ao RSD, estamos a ficar cada vez mais condicionados para cumprir a nossa função. Haverá lojas onde celebrar quando as estantes estiverem nuas e os preços de retalho continuarem a subir?

Espero que o RSD possa reconfigurar-se como um genuíno benfeitor para as lojas de discos. O evento precisa de ser adiado até que estes catastróficos congestionamentos de produção sejam aliviados e os organizadores devem consultar os proprietários das lojas sobre a melhor forma de, no futuro, os ajudar a celebrar esta singular cultura. Não deixa de ser irónico que os restantes 364 dias no calendário das lojas de discos passem agora a ser feitos em função das necessidades do RSD.

[via ROMA INVERSA]