Goste-se ou não, os HIM marcaram ali uma época importante para muita gente no virar do século. E há, de facto, muita gente que não gosta, os Deafheaven estão longe de ser a primeira banda a ter deixado muitos durões desconfortáveis com um álbum de capa cor-de-rosa (nem os HIM o são, esse título é capaz de ir meio acidentalmente para o «Born Too Late», mas isso já é outra conversa), mas se a existência de várias atrocidades do nu-metal é tantas vezes justificada pelo facto de “ter trazido muita gente para o metal“, pois bem, têm que levar com o Ville Valo na mesma medida. Ao menos o romantismo fatalista assente em grandes malhas orelhudas de rock lânguido e por vezes até surpreendentemente pesado (grandes riffs Sabbathianos, ó haters! Vão lá ouvir os dois primeiros álbuns, a sério) dos finlandeses tinha de facto qualidade, e até envelheceu bastante bem. Tal já tinha ficado provado no adeus dos HIM que teve passagem pelo Hard Club em 2017, e agora com Ville Valo em nome próprio — ou iniciais próprias, vá — essa “fidelidade” mantém-se.
Ainda cá fora na fila para entrar, viam-se muitos dos que se perderam de amores por hinos do calibre de «When Love And Death Embrace», «Poison Girl», «The Funeral Of Hearts» ou «Join Me In Death» na altura. Cabelos mais esbranquiçados, umas rugas extra aqui e ali, mas firmes e hirtos nesta nova fase da carreira do senhor. Melhor ainda — pelo meio de nós, os velhotes, muita juventude também. Não só os “fãs de segunda geração“, mas miudagem que terá descoberto ou os álbuns antigos dos HIM, ou já o próprio «Neon Noir», que diga-se de passagem tem perfeitamente méritos para se aguentar por si só e conquistar todo um novo público que não andava cá na primeira vida do cantor nórdico. A verdade é que, seja qual for a paragem em que se tenha entrado no comboio dos HIM, a ligação umbilical que continua a manter com a sua antiga banda é inegável para Ville Valo, e o próprio não faz esforço nenhum para o negar. Antes pelo contrário, e ainda bem — tem noção daquilo que leva muita gente ainda hoje a ouvi-lo, até porque o material actual não está assim tão longe como isso do que fazia antes, e abraça por completo o seu passado, sem merdas. Até o logo do VV encaixa lindamente no heartagram do cenário e tudo.
Como nos disse recentemente uma figura grande do metal cuja entrevista exclusiva vamos publicar em breve (estejam atentos!), “desde que eu não toque apenas material antigo, que não me torne basicamente num museu vivo, acho que está tudo bem.” Concordamos plenamente, e sendo assim, esteve tudo bem ontem à noite. O alinhamento do concerto foi realmente a amostra perfeita dessa simbiose pacífica entre eras, com VV a alternar, um a um, temas antigos com temas de «Neon Noir», e a verdade é que a maior parte deles justificou perfeitamente esta constante comparação lado a lado com os “clássicos”. Os novos são composições mais simples, é um facto, mais suaves na sua generalidade, mais obviamente radiofónicos — nitidamente um esforço de um homem só, e não de uma banda, e um produto da idade e maturidade, também. De forma sábia, VV soube ter noção que já não é um boémio de vinte e tal anos de cigarro pendurado ao canto da boca, que emborca duas ou três garrafas de vinho por concerto mas está tudo bem porque basta-lhe um piscar de olho e um gemidozinho a mais e tem o público na mão quando quer. Esses anos já passaram, e é bom que a sua música actual reflita isso. A própria interpretação dos temas antigos não é feita da mesma forma, não querendo dizer com isso que está “ao lado”, bem pelo contrário. Tendo em conta aqueles excessos dos early days, até se pode dizer que esta banda actual — onde se destaca o excelente solista Mikko Virta — até é bem mais sólida. Menos wild rock’n’roll, claro, mas musicalmente está “na batata”.
Não foi tudo perfeito, como é óbvio. A tal matemática de uma velha/uma nova “forçou” a que o novo álbum tenha sido praticamente todo tocado (só faltaram «Baby Lacrimarium» e «Vertigo Eyes»), e como a própria banda já terá percebido, pessegadas como «In Trenodia» ou «Heartful Of Ghosts» até podem ajudar a dar uma dinâmica diferente quando são metidas ali para o meio do disco, mas não têm lugar num concerto — mesmo com um público rendido, que reagiu de forma tremendamente entusiasta à maior parte das outras escolhas de «Neon Noir», já com letras bem decoradas e tudo apesar de o álbum nem ter dois meses de vida ainda, durante esses temas o ambiente geral era de “vou ali ao bar então” ou “deixa cá ver o email num instante“. Nada de grave, e certamente arestas a aparar facilmente quando o catálogo de VV já tiver mais entradas por onde escolher. De resto, o que se poderia esperar: com uma do «Greatest Lovesongs Vol. 666», três do «Razorblade Romance», três do «Love Metal», uma do «Dark Light» e uma do «Venus Doom», não há muito por onde falhar. Os Statlers e Waldorfs deste mundo, como este velho empedernido que vos escreve, vão sempre arranjar coisas para apontar (“toca mais do primeiro“, “esqueceste-te do «Deep Shadows And Brilliant Highlights»“, “a cover da «Wicked Game» tinha ficado aqui a matar“, coisas deste género que vão passando pela cabeça), mas dois segundos depois o homem saca de uma «RIght Here In My Arms» particularmente inspirada, ou derrete-nos o coração com «Run Away From The Sun» (para já, “o” malhão pós-HIM) e já nos esquecemos do cinismo.
O finlandês nunca foi de grandes diálogos com o público, e com a idade parece ter refinado essa postura. Foi só mesmo no fim, antes da conclusão com «Saturnine Saturnalia», que decidiu conversar um bocadinho com o pessoal na sua voz impossivelmente grave, entrou por um discurso simpático mas meio desconexo que meteu uma analogia com a série nova da Apple com o Vincent Cassel («Liaison»), e depois lá desceu à terra e apresentou os membros da banda. Deixou ainda largas palavras elogiosas ao trio islandês que tinha aberto o concerto, as Kælan Mikla, e realmente já era altura de nós o fazermos aqui também. Celebrando em 2023 dez anos de existência, a banda que foi formada para competir a um concurso de poesia já atingiu pontos altíssimos na sua carreira (presença no Roadburn, digressões com bandas importantes), e nesta sua primeira visita a Lisboa voltou a mostrar o porquê, com o seu post-punk fantasmagórico, alicerçado nas fortes batidas electrónicas e texturas sonoras de Sólveig Matthildur e no pulsar pujante do baixo distorcido de Margrét Rósa, enquanto a feiticeira Laufey Soffía vai tecendo os seus arabescos vocais e envolvendo tudo à sua volta. A apoteose final com gritos intensos por parte das três senhoras foi, numa palavra, arrepiante. Magnífica abertura para aquela que acabou por ser uma noite de reencontros e, muito provavelmente, recomeços.
ALINHAMENTO: 01. Zener Solitaire | 02. Echolocate Your Love | 03. The Funeral Of Hearts | 04. Neon Noir | 05. Right Here In My Arms | 06. Loveletting | 07. Buried Alive By Love | 08. In Trenodia | 09. Rip Out The Wings Of A Butterfly | 10. Heartful Of Ghosts | 11. Join Me In Death | 12. The Foreverlost | 13. The Kiss Of Dawn | 14. Run Away From The Sun | 15. When Love And Death Embrace | Encore: 16. Soul On Fire | 17. Salute The Sanguine | 18. Poison Girl | 19. Saturnine Saturnalia.
FOTOS: Estefânia Silva