Não será propriamente uma surpresa para ninguém afirmar que aquilo que o Greg Anderson tem vindo a fazer ao longo da carreira se encontra entre o melhor que o género já produziu. Que género? Não sei, ninguém sabe, nem vale a pena saber – e quem gosta de chamar nomes às coisas arrepende-se sempre mais tarde ou mais cedo quando se engana no caminho para o Bairro Dos Burgueses Asseados e dá consigo perdido algures nas florestas de distorção pantanosa que Anderson tem vindo a conjurar há já mais de 40 anos. Neste grande guarda chuva a que chamamos música extrema não há muita gente a trabalhar a materialidade da distorção como The Lord, o nome que encarnou nesta sua experiência a solo – e quem o faz acaba sempre na sua esfera de influência.
Essa atenção que me parece francamente alucinada (e milimetricamente obsessiva) é uma atitude que deve muito mais a uma “ética” experimental que outra coisa qualquer e, para não irmos muito mais longe, o desprezo de dentes arreganhados com que se atira ao formato canção é, digamos assim, o sintoma mais visível dessa queda para a experimentação. Quem tem acompanhado o que fez no contexto de Goatsnake e Sunn 0))), que é provavelmente o que de mais emblemático ou icónico há na sua produção, vai encontrar aqui alguns pontos de contacto óbvios (não é preciso um gajo andar às aranhas de candelabro acesso no meio da floresta porque já conhece mais ou menos os cantos à casa; e, OK, porque acender luz na escuridão é sempre um péssimo conselho – nunca se sabe muito bem que monstro é que pode aparecer).
E o que de mais interessante há neste «Forest Nocturne» é precisamente como ora se aproxima, ora se afasta, desse drone pantanoso a que nos habituou, agora com um pano de fundo cinematográfico eventualmente mais assumido ou vincado que em trabalhos anteriores. É aliás uma relação que nunca deixa de despertar curiosidade, a forma como um imaginário visual vai ganhando força à medida que nos afastamos desse colete de forças chamado canção.
«Forest Nocturne» é portanto um álbum conceptualmente ligado a duas figuras centrais (ainda que brutalmente distintas) na relação entre música e imagem – John Carpenter e Bernard Hermann. Dois nomes ligados ao horror – o Carpenter, enfim, por ser o Carpenter; o Hermann, mais pelas inúmeras bandas sonoras que fez para um senhor chamado Alfred Hitchcock – e que de uma forma ou outra já andavam a inspirar algumas das ideias de Anderson. Apesar desta carga um bocadinho “serious business” que os gestos de homenagem costumam transportar, o disco tem uma natureza surprendentemente leviana e quase bem disposta – há pelo menos um certo humor escondidinho, e seja como for o Greg Anderson já tem o direito de fazer aquilo que lhe der na gana, e nós só temos é que o levar a sério.
É um disco inegavelmente nocturno, e é também por isso um daqueles discos que se ouve com particular deleite às 04:20 da madrugada. E as faixas onde Hermann e Carpenter mais se fazem sentir são precisamente aquelas em que a fronteira da lucidez mais treme – e não deixa de ser impressionante a forma como Greg trabalha esse desnorte não tanto a partir da guitarra mas sobretudo a partir de um arsenal de sintetizadores. O tríptico «Church Of Hermann», «Lefthand Lullaby I» e «Lefthand Lullaby II», são as composições onde esse lado mais “onírico” se faz sentir – no caso do tema dedicado a Hermann é toda uma evocação cerimonial, no caso da “lullabies” estamos já perante aqueles piscadelas de olho ao horror insinuante de Carpenter que assenta que nem uma luva neste imaginário (e já que estamos com a mão na massa, a ilustração da capa do álbum feita pelo Dan Seagrave é mesmo uma maravilhosa porta de entrada para o mundo de «Forest Nocturne»).
Os oito temas que compõe o disco funcionam surpreendentemente como um todo, isto apesar da divisão mais ou menos vincada que os “temas homenagem” provocam, e muito disso se deve à repetição enquanto elemento-chave de composição de todo o álbum, característica aliás já bastante saliente em boa parte da carreira do músico. Aqui resulta num efeito inevitavelmente hipnótico, uma repetição labiríntica que tem tanto de óbvio e gratuito (há a nítida sensação que há aqui material gravado pelo simples prazer de gravar, e tenho cada vez mais a impressão que dizer isto é mesmo um elogio do caraças), mas que na altura certa dá sempre a sensação de ser também um reflexo de uma procura – como se a dimensão performativa do disco nos colocasse num transe qualquer propício à caça de ideia malucas.
E onde nos leva essa procura? À garganta cavernosa do Attila Csihar, como se todo o álbum fosse um lento e deliberado engodo capaz nos conduzir diretamente à gruta do monstro. «Triumph Of The Oak», tema absolutamente inesquecível que encerra o álbum, é uma colaboração que eleva o lado instrumental do disco para todo um novo patamar: veja-se por exemplo como o throat singing infernal de Attila nos puxa para um manto de distorção medonho e enleante, numa circularidade rítmica meticulosamente pensada. E é aqui que o trabalho de Greg nunca deixa de impressionar, pela abordagem “super a sério mas não tão a sério quanto isso” na composição, pela forma como se afunda no pântano da distorção para tocar qualquer coisa de imaterial – e tudo isto na boa, sem aquela pose majestosa dos Sunn 0))) que (incompreensivelmente) continua a afastar muita gente. [8]