TEMA A TEMA: Process Of Guilt – «Black Earth»


No terceiro volume desta nossa rubrica, focamo-nos naquele que foi o disco nacional do ano para a redacção da LOUD! no ano passado, o tenebroso «Black Earth», dos Process Of Guilt. Os cinco pesadíssimos temas que o compõem são autênticos pedregulhos de toneladas a caírem-nos em cima quando os ouvimos, seja na enésima escutadela ao disco, seja nos concertos ao vivo do quarteto, que são, como seria natura, predominantemente dominados por estes malhões desde a edição do álbum. Mergulhando neles de forma profunda para nós também os entendermos ainda melhor, o vocalista/guitarrista Hugo Santos tem a palavra.

Quase um ano passado sobre o seu lançamento, deveria ser mais fácil abordar a descrição de «Black Earth». No entanto, em plena fase de promoção a este disco, em especial após alguns concertos recentes, trata-se de algo que, apesar da distância que já nos separa do momento em que o gravámos, ainda nos é muito próximo e cada vez mais pessoal. Ao trabalho de estúdio, este último ano de actuações ao vivo associou uma carga pessoal (e física) aos temas que os fixa ainda muito no nosso presente, impossibilitando um afastamento que permita uma descrição mais impessoal e objectiva. Mas, por outro lado, não será esse o objectivo deste texto.

Para uma introdução ao «Black Earth», é importante referir que, como ponto de partida, ambicionámos o exponenciar das características que normalmente são associadas aos Process Of Guilt. Foi, assim, natural que este disco se nos revelasse com um acréscimo de negritude, de intensidade e de um maior groove, que procurámos acentuar através do desenvolvimento de uma temática lírica que explora a relação do homem consigo mesmo, questionando, também, a sua verdadeira natureza e o seu enquadramento na Terra. A descrição do disco implica, necessariamente, referir que a sequência dos temas foi algo que dominou o nosso espírito durante algum tempo e, a partir do momento em que a estabelecemos, todo o desenrolar do processo de gravação, mistura e masterização seguiu sempre o mesmo alinhamento. Procurámos que «Black Earth», acima de tudo, seguisse uma linha condutora, não em termos de estrutura ou similitude entre os temas, mas que, ao invés, transpirasse uma identidade evidente, uma atmosfera quase tangível, apesar da diversidade de abordagens que isoladamente cada um segue. No fundo, tentámos fazer um disco com princípio, meio e fim enquanto peça sonora, ao invés de um conjunto de canções reunidas de forma, mais ou menos, aleatória.

1. «(No) Shelter»
Sendo o tema de abertura, queríamos que tivesse uma energia diferente daquela que nos era associada, quase como um “choque” inicial, que se traduz num maior dinamismo de tempos e ritmos. Assim, «(No) Shelter» inicia-se de forma frenética, evoluindo a partir de uma sequência melódica de acordes, com uma bateria mais rápida e dinâmica do que muito do que fizemos no passado, até um momento de maior acalmia, em jeito de equador deste tema, culminando numa secção de maior peso que evolui a partir da sequência melódica inicial, até se transformar numa “massa” de tom e groove. A letra aborda a busca de protecção no apego que criamos nas nossas vidas – os falsos ídolos – e como o mesmo pode não ter substância válida na barreira entre nós próprios e os outros. «(No) Shelter» foi o primeiro tema com que tivemos contacto ao longo do processo de mistura do Andrew Schneider e, ainda hoje, representa para nós a melhor forma de nos apresentar ao vivo, sendo naturalmente aquele que mais vezes elegemos para iniciar os nossos concertos.

2. «Feral Ground»
Dotado de um maior imediatismo de ritmos e estrutura, foi «Feral Ground» o tema de avanço que escolhemos para «Black Earth», correspondendo também ao motivo do nosso primeiro vídeo. Após a exploração da tensão associada ao acorde inicial, inicia-se um jogo de riffs e ritmos bem “encaixados” que procuram vincar o balanço natural associado ao primeiro acorde. Este é, também, reforçado pela colocação das linhas vocais em conjugação com a letra, alusiva a uma certa adversidade externa que nos obriga a procurar isolamento no nosso interior, para aí apenas encontrarmos o vazio. Consideramos ser um tema, talvez, mais directo na comparação com os restantes que integram o disco, onde se evidencia uma costela mais “industrial” ou mecânica da nossa música, especialmente no início e no final do tema, naturalmente contrabalançada pela abordagem mais orgânica que fazemos aos instrumentos.

3. «Servant»
Depois de um longo processo de tentativa e erro, foi com «Servant» que sentimos que estávamos a criar algo novo que viria a tornar-se «Black Earth». Demorámos algum tempo até atingir o ambiente adequado ao que almejávamos para a secção inicial, mais claustrofóbica e seca do que seria habitual na nossa música, tanto ao nível dos instrumentos como das linhas vocais ou, mesmo, da letra. Precisamente por ser o tema que mais tempo esteve connosco antes de entrarmos em estúdio, foi também aquele que maiores modificações sofreu aquando da gravação. Em especial, até conseguirmos o equilíbrio que ambicionávamos entre a primeira parte mais “seca” e crua – onde a dinâmica entre baixo e bateria é determinante para complementar a exploração dos tons da guitarra em que apenas um acorde é tocado quase ad infinitum sem qualquer efeito adicional – e o peso e progressão da secção final – onde todos afinamos pelo diapasão da distorção e do peso.

4. «Black Earth»
Sendo o tema que empresta o seu nome ao título do disco, será natural a importância que o mesmo assumiu (e assume) para nós. O riff base de «Black Earth» é algo que cedo surgiu ao longo do processo de composição do disco, mas que, por alguma razão, não passava apenas de um riff e de um padrão de bateria que não nos oferecia, à partida, grandes hipóteses de o desenvolvermos. No entanto, no final da pré-produção que antecedeu a entrada em estúdio, de forma algo inusitada, surgiu a estrutura que acabou por ser a final. É um daqueles temas que, apesar de todo o tempo que perdemos à volta de riffs e estruturas que mandámos para o “lixo”, quando nos apareceu na sua forma final, foi como se tudo já estivesse feito, sendo apenas questão de limarmos uma ou duas arestas para o concluir. A dada altura, o impasse inicial que sentimos neste tema inverteu a tendência e transformou-se numa avalancha de conceitos e ideias que resultaram num dos temas mais pesados e crus que já compusemos. Quisemos, no entanto, evitar um excesso de atenção ao pormenor, dado que pretendemos preservar a espontaneidade com que surgiu. É um tema carregado de intensidade em que a associação entre as linhas vocais, as letras e o padrão rítmico é determinante para o seu entendimento. Desde o prelúdio rítmico, à colocação de voz, passando pela entrada na secção com maior distorção, com a mudança de tonalidade, passando pela parte central mais atmosférica, até à conclusão apoteótica e ao prólogo melódico, em tudo reconhecemos uma identidade tão evidente que rapidamente concluímos que seria este o nome mais adequado para o disco.

5. «Hoax»
Foi provavelmente, desde o esboço inicial até à estrutura final, o tema mais célere a ser concluído. Julgo, sem certeza, que terá sido um dos últimos, senão, mesmo, o último tema a ser escrito, e, por essa mesma razão, já estávamos dotados de uma certeza e segurança nos riffs que nos permitiram vincar as características que queríamos emprestar a este tema. Desde o “ataque” inicial, bastante diferente do que oferecemos no resto do disco, até ao riff central, pleno de balanço e intenção, quisemos dotar «Hoax» de um peso e magnitude que fosse efectivamente o culminar da experiência de «Black Earth». A letra aborda esta mesma sensação de término, de passarmos ao lado de alguma coisa realmente importante e, simultaneamente, de “acordar” perante o engano que todos os nossos símbolos, a nossa vida, nos proporcionam. Também, no processo de mistura, quando aqui chegámos, já tudo estava bem definido e terá sido, porventura, um daqueles temas em que após a primeira audição pouco terá ficado a acrescentar. Apesar de «Hoax» aparentar uma maior simplicidade de estrutura, sendo composto por partes bem distintas que no final se fundem, é talvez o mais intenso do disco e aquele que melhor se adequa para o terminarmos na plenitude de peso, groove e intensidade.