Então e, passado aquele primeiro dia, o da retoma, o da excitação de voltar a pisar o terreno profano de Barroselas, a meca do metal extremo nacional, o dos reencontros e reatamentos, o entusiasmo continua o mesmo? Tirando os óculos cor-de-rosa, adicionando eventuais ressacas, com os mais anti-sociais de entre nós já começando a estar fartos de pessoas, de levar com cerveja em cima, dos stagedivers que não nos deixam ver os concertos em paz… Pode-se dizer que o SWR Feast continuou a ser esse sucesso todo? Sim, pode-se. If anything, este segundo dia ainda foi melhor, e não foi só por causa dos Autopsy. Se bem que ajudaram, claro. Mas tudo ajudou. Até o tempo, que se manteve agradavelmente ameno, sem sinais daquele micro-clima demoníaco que se abate sempre por cima da vila minhota durante o evento. Talvez pela primeira vez na história, saímos do SWR a desejar que tivesse havido mais dias de festival.
Sem Metal Battles para gerir, as bandas do SWR Cafe estiveram mais soltas do que no dia anterior, e também ajudado por isso, o alinhamento deste segundo dia pareceu, no geral, mais equilibrado. Os Alcoholocaust, invulgarmente (são nitidamente mais banda de degredo às 3 de manhã do que para abrir hostilidades), foram o abridor de pestana, e só se pode dizer que a missão foi cumprida com o mau ambiente delicioso do costume. Quando um grupo tem um tema que inclui o apelo prévio para os góticos irem “todos lá para fora, caralho“, e não só a malta de pinta mais gótica permanece toda, mas ainda se junta à multidão para o irresistível refrão “anti-gótico!“, está tudo dito. Claro que o som continuou questionável no espaço cada vez mais insuficiente do Cafe, mas no caso particular dos Alcoholocaust e da sua aproximação “quanto-pior-melhor”, isso até é uma espécie de vantagem. A produção nacional continuou a dar cartas neste início de dia 2, com os Midnight Priest a estrearem a SWR Arena. E não há grande maneira de dar a volta à questão – foi uma estreia complicada. Com uma entrada que deveria ter sido de rompante com a emblemática «Rainha Da Magia Negra», cedo se percebeu que não seria o dia do quinteto, com o novo vocalista, Zed Razor, ainda nos seus primeiros tempos de adaptação à banda e consequentemente merecedor de alguma compreensão, a apresentar-se particularmente “ao lado”. Felizmente, a coisa foi indo ao sítio com o decorrer da actuação, e os últimos dois ou três temas já mostraram os Midnight Priest – Zed Razor incluído, em claro ganho de confiança – numa forma mais próxima da que nos habituaram, contando mesmo com uma aparição especial do vocalista original, Eduardo “The Priest”. O trio de abertura nacional ficou concluído com uma poderosa performance dos Equaleft no SWR Cafe, ou pelo menos tanto quanto o PA permitia – qualquer banda com mais dependência de tonalidades mais graves, como o groove modernaço dos portuenses bem precisa, iria inevitavelmente sofrer neste combate desigual com a tecnologia. Seja como for, os temas dos seus dois álbuns que preencheram o alinhamento são fortes o suficiente para sobreviver a essas questões, e o público compareceu em massa para apoiar a banda – de forma literal até, como quando o vocalista Miguel Inglês se atirou para a molhada num crowdsurf entusiasmante.
Era altura do contingente internacional entrar em cena, num dia só com três representates além-fronteiras, mas todos eles de qualidade superlativa. Escolhas cirúrgicas e, diga-se, todas acertadas. Terá causado alguma estranheza, nos últimos anos, o aparecimento dos Sijjin na cena – ainda agora temos alguma dificuldade em compreender totalmente o passo dado pelo germânico Malte Gericke, anteriormente mais conhecido como Mors Dalos Ra, em terminar o percurso dos muito aclamados Necros Christos para criar uma nova entidade que, sejamos sinceros, não é assim tão diferente como isso. Os Sijjin, musicalmente falando, são uma espécie de simplificação da sua banda anterior. Reduzidos ao formato nuclear de power trio – até o baterista espanhol Iván Hernández acompanhou Malte nesta transição, com mais um nuestro hermano, o basco Ekaitz Garmendia, a completar a nova formação – e sem os arabescos atmosféricos que a anterior banda usava e, por vezes, abusava (sinceramente, se forem ouvir agora o «Domedon Doxomedon», por exemplo, não é de saltar os “Gates” quase todos?). Conceptualmente, saltámos um bocadinho do misticismo cabalista para a mitologia suméria, mas para o “comum dos mortais”, não parece que haja assim tanta diferença como isso só por aí. Seja como for, considerações à parte, o resultado é que estavam três tipos em vez de quatro em palco, o Malte não estava vestido de robes cerimoniais e sim “à civil” (rico gosto em t-shirts no trio, já agora, com os Sepultura do «Schizophrenia» e os, lá está, Autopsy do «Mental Funeral» bem representados!), mas de resto, mesmo num registo mais “operário”, o impacto Morbid Angel-esco do death metal labiríntico, elaborado e inteligente que foi debitado foi essencialmente o mesmo que já conhecíamos. Ou seja, muito. Sem desvios do universo Sijjin – nada de Necros Christos, nada de covers, só temas do «Sumerian Promises» tocados numa ordem próxima à do álbum e um da demo -, não houve surpresas, mas houve bom death metal, num dia em que era esse o género-rei, por força dos headliners.
E olha, simplicidade por simplicidade, que tal uma crustalhada por entre gigantes do death metal, para espairecer? Foi um rico arraial de porrada o proporcionado pelo agora-quarteto dos Simbiose, como é de resto seu apanágio há muitos anos já. Numa fase em que as responsabilidades vocais estão exclusivamente entregues a Jonhie, a questão dos dois vocalistas, que parecia parte integrante do som da banda, nem sequer parece assim tão relevante, já que a intensidade com que os temas são debitados, tanto os mais antigos como os mais recentes, continua a ser a mesma. Com o mais recente integrante, o baixista João Lavagantes, totalmente integrado no meio dos outros três “velhotes” ao ponto de parecer que já ali anda há décadas, os Simbiose deram mais uma lição de consistência, experiência e, sim, violência.
Dos Autopsy, já vos falámos de sobremaneira, e até foi o mesmo tipo que está agora a escrever estas linhas, portanto evitemos repetições, não se vá ainda dizer que o gajo é algum fanboy da banda ou algo assim. Mencionar apenas duas coisas – o elogio à resiliência dos manos Veigas, guerreiros inquebráveis que nunca desistiram face às adversidades e conseguiram manter o nome mais icónico do cartaz original do SWR 2020, e uma pequena reflexão perante o efeito nivelador que eventos como este têm, algo que parece ser, se não exclusivo, pelo menos muito mais notório na “nossa” cena do metal extremo. Perante um nome lendário, uma das maiores bandas da actualidade dentro do género, encabeçadores de festivais gigantescos um pouco por todo o mundo, a postura do público, o ambiente, até mesmo o número de pessoas a assistir, não é muito diferente do que se fosse uma pequena banda nacional que tenha vendido vinte cópias do seu último álbum. A própria banda apresentou-se de forma despretensiosa, bem dispostos, felizes por estarem ali, e cheios de elogios para o evento nos dias que se seguiram através das suas redes sociais. Um verdadeiro exemplo de igualdade e apoio incondicional à arte. Numa altura de pessimismo exacerbado um pouco por todo o lado, é importante reconhecer as coisas boas.
Falando de coisas boas, diga-se que seria difícil fosse para quem fosse tocar a seguir aos norte-americanos, e ainda por cima com as limitações já sobejamente mencionadas do SWR Cafe, mas os Filii Nigrantium Infernalium sempre se estiveram a borrifar para supostas dificuldades ou limites, e vai daí, dispararam aquele que foi, de longe, o melhor concerto do fim-de-semana, não contando com a turma do Reifert. E mesmo contando, não ficou tão longe como isso. Começa logo pelo setlist – mesmo tendo sido uma adição tardia ao cartaz (um grande abraço aos “substituídos” Decayed, que sabemos que teriam feito boa figura semelhante caso lhes tivesse sido possível a participação), foi possível fazer algo (ainda mais) especial, dando ênfase especial ao lendário «A Era Do Abutre». De facto, «Abadia Do Fogo Negro», «Herança De Outono», «Inverno, Trono Inverno» e «A Era Do Abutre» (esta, logo a abrir, e que abertura que foi!), os quatro temas que compõem a edição original daquele que será o melhor EP/mini-álbum da história da música extrema nacional, foram todos interpretados com mestria e selvajaria, porventura de forma ainda mais ácida, precisa e impactante do que os próprios originais, se conseguirmos distanciar-nos das emoções da nostalgia um bocadinho. Claro que ainda são os Filii, portanto não há cá papinhas feitas e os quatro temas não foram tocados por ordem, nem todos seguidos, mas quando pelo meio se leva com bordoadas do calibre de «Não Há Futuro», «Calypso», «Labyrinto» ou «A Forca», não há ninguém que se queixe. Nem a boa alma que passou a primeira metade do concerto a pedir «Cães De Guerra». Fica para a próxima, rapaz. A fechar, «Cadafalso», para a qual o mestre de cerimónias infernais, Belathauzer, afirmou não ser merecedor de tocar as partes de guitarra escritas pelo ex-membro Duarte Picoto, aka Mantus. Tivemos então um demónio BTHZR só de microfone na mão, ainda mais solto e desvairado que o costume, a meter um ponto de exclamação numa performance inesquecível. Alguns pormenores relevantes a reter – antes de mais, o som bem próximo do aceitável, de longe o melhor que se ouviu no SWR Cafe durante o fim-de-semana, mostrando que a “culpa” do PA podia ter sido minimizada por bandas como os F.N.I. com a mestria para saber dar a volta aos problemas. Outro, a importância de João Duarte, ou J. Goat, ou melhor ainda, Cardeal Aborto XIII como é o seu nome oficial no delirante universo Filii, na formação actual. Os elogios que fizemos ao Greg Wilkinson, o “novato” dos Autopsy, que parece funcionar como cola agregadora e ajudar a fazer da banda uma máquina de guerra ainda mais letal ao vivo, podem facilmente ser replicados aqui para o efeito do talentoso guitarrista na formação actual da mítica banda nacional, talvez a mais musicalmente coesa da sua longa história. Finalmente, mais um elogio para os “Filii contemporâneos” – notar que, apesar do triunfo que foi o concerto, sentimos a falta de uma «Pó» ou «Lactância Pentecostal», por exemplo. Esperamos que o vindouro álbum nos dê mais bons problemas destes.
Por nós, sem desfazer nos Birdflesh, o SWR Feast podia perfeitamente ter ficado por aí, musicalmente falando. Mas festa é festa, tradição é tradição, e um último dia sem uma banda de “grind do disparate” até seria esquisito. Afinal, o pessoal vestiu-se de Pikachu e trouxe brinquedos insufláveis da praia para quem? E os suecos até são um bom compromisso nesse aspecto – bem mais musicais que uns Gutalax ou Rompeprop ou outros do género, e como consequência aguentam-se bem mesmo para quem não seja fã particular do bailarico abrutalhado. Isso foi comprovado pela audiência numerosa que se recusou a arredar pé até que a última nota fosse tocada. Claro que parte disso também tem a ver com tudo o que temos dito acerca do que esta edição significou para todos nós – a ideia de que vamos ter que esperar um ano inteiro para outro SWR parece insuportável. Mas já estivemos pior. Os Filii que nos desculpem, mas agora já parece haver futuro.
FOTOS: Estefânia Silva