Podemos não ter ainda voltado à “normalidade” a 100%, mas poucas coisas nos fazem sentir por dentro que o pior já passou do que estar a caminho de Barroselas para mais uma edição do SWR. Feast, em vez de Fest, oito bandas por dia em vez de demasiadas, possibilidade de ver todas e estar na caminha antes das 2 da manhã, só dois dias, mas whatever, SWR é SWR. Isso fica amplamente patente assim que se mete o pé no recinto – limitado à SWR Arena no exterior como palco “principal” e ao SWR Cafe convertido em palco “secundário” – e nos sentimos imediatamente em casa, independentemente das diferenças de uma edição de transição e retoma. É até comovente passar por – e testemunhar o mesmo à nossa volta – todos os rituais de reencontro, e perceber a felicidade do público em geral, mais numeroso do que as melhores expectativas apontavam, diga-se de passagem, em estar ali. Só isso. Claro que, depois do impacto emocional inicial, ajuda ter bons concertos. E a qualidade esteve, de facto, nivelada por cima durante os dois dias, mesmo com uma produção menos ambiciosa do que o costume. Sim, o penoso lamaçal auditivo proporcionado pelo PA foi um obstáculo para as bandas no SWR Cafe, mas que se lixe, deu para curtir na mesma. E ninguém pensou (esperamos) “que bom que seria ter os Autopsy com o som um bocadinho melhor lá dentro da tenda em vez disto” durante a sua gloriosa actuação de que já vos falámos há uns dias.
Coube então aos Speedemon dar o tiro de partida do SWR Feast, o primeiro concerto do festival desde 2019, mas o peso da responsabilidade, pelo menos de forma aparente, não se fez sentir, durante um concerto solto e entusiasmado por parte de todos os elementos. Com uma audiência menor do que as bandas que se seguiram, fruto de ainda haver muita gente a chegar, a trocar pulseiras ou, simplesmente, ainda na fase de abraços e olás engasgados há anos, o seu speed tradicional teve as características ideais para nos voltarmos a habituar a esta coisa dos festivais e de voltar a ouvir barulheira no meio de mil tipos sem máscara, mesmo sem gerar o caos que costuma. Actuação meritória, face às circunstâncias, que ainda incluíam o facto de estarem a ser “julgados” – é verdade, as três primeiras bandas deste palco, neste dia, foram os candidatos à habitual Wacken Metal Battle. Os resultados, ao contrário dos outros anos, não foram comunicados de imediato, e neste momento ainda não sabemos qual a banda escolhida, mas mantemo-vos actualizados assim que houver fumo branco. Fumo, é algo que os Boulder provavelmente gostam, e teriam merecido um bocado mais de névoa no som debitado, por acaso – pelas características do sludge pesadão que praticam, foram os que mais sofreram com o PA do SWR Cafe, que foi menino para derreter os graves todos e tirar uns pontos ao impacto do concerto dos portuenses. Talvez afectados por isso, foram menos escorreitos do que sabemos que são capazes, mas ainda assim deu para subjugar alguns pescoços naquelas cavalgadas mais High On Fire-escas. O tríptico W:O:A culminou com a que foi, na nossa opinião, a melhor banda do concurso, os Grievance. Longe de serem principiantes nestas andanças (a demo «Por Entre A Escuridão Outonal» já data de 1997), o conjunto liderado por Koraxid tem o seu estilo mais do que bem definido, ancorado imutavelmente no black metal clássico da Noruega dos early 90s, sabe navegar palcos exíguos e de som penoso, e conseguiu mesmo assim face às adversidades criar aquela atmosfera gélida e cortante que os sabemos capazes, ampliada ainda mais pelas lúgubres letras em português que até iam sendo perceptíveis. Houve invisible oranges com fartura, e Satanás saiu de papo cheio. O SWR Cafe do primeiro dia ficou com o seu alinhamento completo com a actuação surpreendente, pela positiva, dos Nekromant. Não que esperássemos que se espalhassem ao comprido, longe disso, mas o impacto da sua mistura sui generis entre hard rock gingão e doom do mais épico e mais “cantado” é bastante substancial em palco, e demos por nós a “curtir milhões”, é mesmo esse o termo técnico. O frontman Mattias Ottosson fartou-se de agradecer o facto de estar tanta gente a ver uma banda sueca a uma hora tão tardia, o que foi enternecedor – mal sabe o rapaz que, no universo barrosélico, a meia noite à qual subiu ao palco equivale mais ou menos a “meio da tarde” no fuso horário local. Já vimos bandas de sítios mais improváveis – e bem piores, verdade seja dita – muitas horas mais tarde, portanto nem sequer foi assim um favor tão grande, ó Mattias, mas o que interessa é que, fosse que hora fosse, toda a gente ficou conquistada por malhões como «Stoned To Death, Doomed To Die», «Scorpio» ou «Wolves Mountain», ou até as mais recentes, tiradas do excelente, mas ainda em fase de digestão, «Temple Of Haal», de 2021.
Voltando o relógio para trás umas horas, a estreia da SWR Arena ficou nas mãos bem capazes dos Besta. Não nos lembramos, de facto, de melhor escolha para abrir um palco no primeiro dia de um festival também ele de regresso. A Besta é imediata – um segundo de concerto e já toda a gente percebeu o que está ali a fazer. É para partir tudo, a (micro-)golpes de grind frenético, um grind que agora até soa mais desgarrado e mais áspero – mais punk, no fundo – com a recente mudança de formação. Não foi só sair o Gaza e entrar o Ricardo Matias (também companheiro de Ricardo Correia e Paulo Lafaia nos Sinistro, recorde-se), foi sair um baixo e entrar outra guitarra. A adaptação poderia ter sido complicada – e poder-se-á discutir as virtudes e os defeitos do som resultante -, mas o que é facto é que tudo pareceu bastante natural e com o impacto de sempre. Até porque, mesmo que estivessem todos a tocar ferrinhos, o vocalista Paulo Rui havia de achar maneira de armar aquele estrilho hiper-enérgico do costume e meter a plateia a mexer na mesma.
A primeira banda estrangeira a voltar a pisar o chão do palco do SWR foram os Skeletal Remains, que serviram de uma espécie de aperitivo para os reis do death metal que demonstrariam a validade do seu estatuto no dia seguinte. Ainda que estes norte-americanos, que voltaram a ter dois elementos fundadores na formação depois do regresso do guitarrista Mike De La O – juntando-se ao líder, o guitarrista/vocalista ex-Fueled By Fire, Chris Monroy -, sejam bem mais influenciados pelos Morbid Angel do que propriamente pelos Autopsy, aquele espírito de podridão do death metal do início dos 90s está lá todo. Sem serem propriamente candidatos a título nenhum, são uma daquelas equipas sólidas que vai quase sempre à Europa, e os Van Drunen-ismos vocais do Monroy fazem bem à saúde a qualquer fã que se preze do estilo. Horita bem passada, a aquecer o público antes da recepção à criatura obscura que já se aproximava no horizonte.
Dessa criatura, os Mgła, já o nosso grande Emanuel Ferreira falou em detalhe aqui, e serve esta menção para pouco mais que corroborar quase tudo em termos musicais e de performance, especialmente quando o som com que esmagaram as centenas de presentes estarrecidos é descrito como “a destruição, a avassaladora máquina sonora criada por M“, e realçar o “iminente rolo compressor, que em alguns momentos abranda e traz a suavidade melódica, como a meio de «With Hearts Toward None I».” É de facto uma pena, para quem essas coisas têm alguma influência (e por mais que nos esforcemos por não terem, quando a música é mesmo boa), que se trate de um pessoal algo problemático em termos ideológicos, ainda que isso não esteja aparentemente expresso de forma directa na sua música. Até nos conseguimos esquecer por um momento dos Leichenhalle, por exemplo, até nos conseguimos convencer de que aquilo são só espectros sem face a debitar arte negra da mais alta ordem, mas há sempre qualquer coisa, nem que seja um pin na lapela, que nos dá uma bofetada de realidade de vez em quando. (In?)felizmente, a maioria parece estar-se a cagar, e um bom concerto é um bom concerto, portanto siga o baile.
…de forma bastante literal, diga-se. O bailarico mais movimentado da noite estava, naturalmente, reservado para os Deathhammer, naquele icónico slot de “última banda do dia” que ganha contornos míticos no contexto do SWR, uma banda cujo thrash amalucado se adequa perfeitamente à ocasião. O frontman Sargeant Salsten é uma figura castiça e cheia de personalidade, com caretas, corpsepaint e cheio de moves, de tal forma que mesmo que se desligasse o som e ficássemos só a olhar para o circo montado por este cavalheiro, a coisa continuava a ter piada. Felizmente, no entanto, ninguém desligou o som, e houve stagedive e crowdsurfing com fartura, para deleite tanto do público como da banda. Accionando o botão do cinismo crítico, é certo que já foi mais fascinante ver um concerto do duo – aumentado para quarteto ao vivo – nórdico. Quando vimos o logo no braço do Dread, na capa do «F.O.A.D.», e fomos todos a correr ouvir as demos, e quando apareceu o «Forever Ripping Fast» um ano depois disso, se calhar esperávamos um bocadinho mais da carreira dos Deathhammer. Os cinco discos editados desde então são, como se costuma dizer por vezes com alguma leviandade e que aqui usamos meio na brincadeira, “todos iguais”, se bem que isso não seja necessariamente mau numa banda como esta. Mas são um valor de palco seguro, e daquele pessoal que andava a voar uns para cima dos outros, não ouvimos opinião nenhuma negativa em relação ao que estava a acontecer. Portanto, voltando a desligar o botão do pretensiosismo, foi um fechar com chave de ouro do primeiro dia do SWR Feast.
Fotos: Estefânia Silva