Da última vez que os Swans nos tinham visitado, num impossivelmente longínquo ano de 2017 (não parece que já foi há séculos?), confessámos – e ao fazê-lo, ecoámos as opiniões de inúmeros presentes nessas ocasiões de Lisboa e Porto – um certo enfado. Não é coisa que se admita de ânimo leve, que uma das bandas mais influentes e mais relevantes da música pesada e experimental, que um gigante artístico do calibre de Michael Gira, estava ali demasiado perto de nos começar a cansar um bocado. Mas estava. Por colossais que fossem, aqueles movimentos de volume extremo que ocupavam quase três horas das nossas vidas de cada vez, já não tinham o mesmo impacto do que tiveram quando começaram a trilhar o caminho desta fase, por alturas do «The Seer». E a verdade é que, com a carreira e idade que já tem, e com o número de vezes que já se reinventou, tanto como Swans como com os outros projectos que foi tendo ao longo das décadas, ninguém levaria a mal o Michael Gira borrifar-se nisso e continuar a insistir na mesma fórmula. Só que não, esta música brota-lhe mesmo das tripas e ele sente-a como ninguém. A forma como continua a liderar os concertos com mão de ferro, como aconteceu ontem mais uma vez na Culturgest, sempre a perscrutar com o olhar os músicos que o rodeiam, certificando-se que cada som está como ele quer que esteja, fazendo reparos aos mesmos aqui e ali quando acha que é preciso, chateando-se com o técnico de luzes (convenhamos, quase meia hora para fazer o que o homem pediu logo no princípio do concerto foi realmente um bocado demais – fix the motherfucking lights, pá!), tudo isso vem dessa ligação visceral entre o homem e a sua arte. Estes sons são a extensão do corpo e da alma de Michael Gira. E mais que ninguém, ele terá percebido a necessidade de mais uma reinvenção.
E assim foi. Tanto em disco, como particularmente em palco, a viragem foi perfeitamente natural, e o resultado foi este – os Swans ao vivo já são outra vez uma proposta absolutamente vital. Já nos prendem com o peso de cada nota repetida, já fazem duas horas parecer dez minutos outra vez. E nem foi preciso muito, foi essencialmente uma aproximação diferente ao som. Acabar com a guitarra eléctrica é uma decisão audaz, mas com a introdução de Dana Schechter (Insect Ark) e do seu lap steel e baixo, e do grande Larry Mullins (Bad Seeds, The Stooges, Swans dos anos 90, por aí fora), um percussionista e pianista de eleição, a formação fica agora com, no total, dois baixos, duas baterias, dois lap steels, teclados e sintetizadores. Uma panóplia de texturas diferentes, totalmente adaptáveis a qualquer situação, que fazem variar dramaticamente os ambientes conforme os temas assim o requerem, tudo a girar à volta da guitarra acústica de Gira, que durante 75% do tempo, diga-se de passagem, não faz mais do que repetir o mesmo acorde aberto – a mão esquerda do homem serve mais para fazer de maestro para os outros cinco do que propriamente para tocar. E como tudo isto faz mudar a essência da actuação! Como habitualmente, só material novo e/ou bastante recente, ou seja, quatro do novíssimo «The Beggar», duas do «leaving meaning» e uma espécie de medley que meteu ao barulho o tema-título deste último, a «Cloud Of Unknowing» e a teimosamente inédita «Birthing», que quando o homem tiver finalmente a paciência de gravar num disco será finalmente imortalizada como uma das peças maiores da sua discografia. As características destes temas, e a forma como foram interpretados, transformam um concerto dos Swans numa experiência quase hipnótica. Sim, o volume ainda lá está, o caos também, ainda que um tipo diferente de caos, mas como veículo, mais do que como finalidade. A voz mais presente, permitindo às letras ter o impacto que merecem, e a maior clareza sonora de todo o ensemble, relembram-nos que estamos a ouvir canções, no final de contas, e não a levar com montanhas de som nas ventas, e só por aí toda a relação com o público fica alterada. Ao invés do confronto, do que uma prova de resistência, ver os Swans ao vivo agora é no fundo uma viagem psicadélica, no verdadeiro sentido do termo. As repetições, as cadências rítmicas, os efeitos mirabolantes, tudo está ali para pegar nos nossos cérebros, nós aqui do lado do público, nos deles, que estão ali no palco, e misturar tudo numa papa nutritiva.
O único senão disto tudo? É que com o descartar da guitarra eléctrica, para já, ficámos sem aquela presença zen em palco que era o Norman Westberg, provavelmente a única pessoa das muitas que já tocaram nos Swans a quem o Gira nunca mandou um grito que fosse. Felizmente, o bom do Norm ainda faz parte da família, e sozinho, assegurou a primeira parte com uma subtil, intrincada e sossegadamente majestosa demonstração do que é possível fazer com uma guitarra e uns pedais, tecendo filigranas sonoras que pouco a pouco se foram enrolando á volta do nosso coração. Com a humildade e descontração do costume, quando acabou, deu-nos um adeusinho e disse que o resto da malta já aí vinha para o concerto principal, mais uns cinco minutinhos. Como se, em vez de desfilar beleza pura através de um instrumento, tivesse estado ali meia horita a desentupir um cano ou a aparafusar uma prateleira, no biggie. Melhor introdução para a epopeia que se seguiria, não poderia ter havido.
Vale a pena regressar à Culturgest hoje à noite ou ir ao Teatro das Figuras em Faro, amanhã. Vão ser momentos daqueles que não se esquecem. Again.
FOTOS: Vera Marmelo