MIKE GASPAR, os SEVENTH STORM e uma história de resiliência sem precedentes no underground luso.
Foi uma das bombas nacionais em 2020 no campo musical de peso. Em Julho desse ano, os MOONSPELL anunciavam a saída de Mike Gaspar, o seu baterista de sempre. No mesmo momento, o músico nacional começava a colocar imagens nas redes sociais, que indicavam estar claramente no activo e a preparar-se para algo. Desde logo, no comunicado em que oficialmente confirmava a saída, apesar de referir ser “tempo para estar com amigos e família e ultrapassar dificuldades”, não deixava de afirmar a vontade de “continuar a fazer música” e estar “a trabalhar num novo projecto”.
Nos dois anos que se passaram entretanto, nasceram os SEVENTH STORM e a banda assinou rapidamente contrato com a Atomic Fire Records, que editou finalmente o álbum de estreia do novel quinteto luso, intitulado «Maledictus», em Agosto de 2022.
Este disco surge com o título de “maldito”.
Foi um período de dois anos, como estava o mundo à minha volta. Pandemia, pessoas afastadas umas das outras. Avós a não poderem estar com os netos. Pessoas a falecerem sem poderem ter um último adeus. Acho que quase todas as pessoas passaram por momentos assim. A minha esposa perdeu a avó no meio da COVID-19. Foi um funeral como nunca tinha assistido, feito de uma forma tão estranha e fria. Um adeus em que não houve tempo para sentir e fazer o luto.
O «Maledictus» é não só um pouco da minha vida, tudo o que me tem acontecido e os azares que acontecem na vida. Mesmo na minha carreira, onde tive momentos difíceis de ultrapassar. Tinha o sentimento de estar amaldiçoado, mas é como lidamos com isso que faz toda a diferença. As ferramentas e tudo o que é necessário para ultrapassarmos isso é o que está em tudo o resto, na música, no conceito.
Querer levar tudo para a frente e voltar a ter relevo. Ao mesmo tempo, queria um título que fosse próximo da nossa língua. O latim leva-me sempre mais atrás e faz a ligação a línguas ancestrais e ao utros povos. Estando no sul da Europa, temos mesmo uma ligação super forte.
Não só pela capa, mas há também alguns temas que remetem para o mar e para alegorias marítimas. Existe, de facto, essa ligação?
Para os portugueses o mar está, sem dúvida, incutido ainda nas nossas almas. O fascínio do mar, não saber o que está do outro lado. Nós, portugueses, ou por diversão, ou por outra razão, procuramos o mar. Vamos até lá inspirar-nos. Transmite-nos uma certa calma, todo aquele infinito.
Por ter viajado muito, conheci imensas pessoas que nunca viram o mar, nunca tiveram esse prazer. Quando mando fotos minhas a algum desse pessoal, é uma reacção incrível. Parece que estão a ver o paraíso. Passei muito tempo na Alemanha e nem toda a gente lá teve essa oportunidade. Há também a ligação à pesca, pensei muito nos pescadores.
O lado ecológico, também me faz pensar no mar. Fui criado com muitos açorianos, então é impossível pensar na minha infância sem estar perto do mar. Nasci perto de Boston, lá o mar está em todos os lados. Quando falas com um emigrante português, vem logo à conversa a nossa costa, a nossa praia. O mar, a nossa história.
Moro perto de Cascais e uma das coisas que me deu mais prazer nesta fase foi acordar todos os dias e poder ir correr para a praia. Muito da capa,veio de ver aquele amanhecer que não via há décadas. Quando se está no rock’n’roll, ver o Sol da manhã é raro… Só se for quando vais para a cama.
E foste buscar a palavra “Saudade”, o termo português sem tradução nas outras línguas.
Agora também na Eurovisão. Quando mostrámos o tema à Elisabete, realizadora do vídeo-clip, ela disse-nos que nem podia acreditar na coincidência. É daquelas coisas. [risos] É uma palavra tão difícil de traduzir. Quando viajava pelo mundo e queria traduzir e transmitir esse sentimento, era difícil. Não há uma palavra correcta para tentar sequer traduzir, os americanos usavam o termo “missing”. Isso é quando perdes alguma coisa.
Para os portugueses, é uma palavra tão profunda, remete logo para o fado, para a família. Isso ocorre-me logo a mim, pois estava sempre na estrada. Um tio faleceu-me e eu estava na Sibéria, outro tio faleceu quando acabei de chegar de viagem. Os meus pais fizeram cinquenta anos de casados e eu perdi o avião, quase nem chegava a tempo. Andei sempre nisso, sempre com saudade. E quando viajas, percebes que Portugal tem imensa sorte de ter os recursos que tem.
Era pensar em Portugal que me dava força para tocar todas as noites e pensar que, quando acabasse a digressão, ia voltar a casa. Esse sentimento é tão único, tão especial, que renovou toda a minha energia. Consegui, de alguma forma, ter os pensamentos mais soltos, procurar dentro de mim o que sou e o que quero. Ensaiava à noite e, de manhã, ia correr e ouvir as nossas demos. Tínhamos sempre uma ligação forte, diária, através do whatsapp, sempre a comentar e a evoluir de certa forma. A todas as horas do dia.
Foi algo que aconteceu neste processo. Voltando à «Saudade», foi algo que surgiu mesmo durante a pandemia – talvez por estar isolado, não ter banda, não poder estar com as pessoas, não poder contar às pessoas aquilo que se estava a passar. E perder aquela regularidade de ter as pessoas nos concertos, o pessoal do metal, que de alguma forma foi sempre a minha família.
Há amigos meus que me vão ver sempre que vou a Chicago, Nova Iorque, Munique, Frankfurt, Moscovo, por aí. Estive na Ucrânia, e dois dias depois de gravar o vídeo, começou a guerra, por isso bateu novamente aquela sensação de saudade. O termo vem muito daí, da saudade da vida que tinha, dos concertos, de estar com os fãs, continuar a fazer música, tocar ao vivo.
«Saudade» aparece em quatro versões, pelo menos foi aquilo que recebi aquando da preparação desta entrevista.
No início, pensámos fazer um EP. Desde Setembro que estou em conversações com a editora e essa foi uma das primeiras ideias. Um sete polegadas, ou algo assim. Depois tivemos um problema, todas as nossas músicas são grandes e nunca iriam caber no formato. Então avançou-se para o duplo-vinil, devido ao tamanho das canções e à melhor qualidade da prensagem.
Neste momento, a prioridade é sempre a qualidade. Combina bem comigo, pois as pessoas que trabalham connosco fazem-no arduamente e qualidade é algo que merecem. Também a vontade de dar o melhor, e fazer que as pessoas sintam que o dinheiro que lhes custa a ganhar foi bem empregue. Sobretudo hoje em dia, em que se percebe a vontade das pessoas de ouvirem música e apoiarem as bandas, acho que isso é importante.
Da minha experiência, devido aos festivais que frequento, sinto que a comunidade metaleira desenvolve laços muito fortes e apoia tudo. Foi engraçado, porque me ligaram da editora, referindo as músicas longas. A brincar disse que teriam de fazer um duplo disco. Passado cinco minutos, ligaram de volta a dizer que sim, que seria um duplo vinil. São momentos assim que me dão alegria. Quando fui dizer à banda, que já estava entusiasmada com um vinil, que iam ter dois, ficaram super contentes. É algo especial para eles. Para mim já não será tanto, pois tenho a prateleira cheia discos em vinil, mesmo desde o primeiro.
O Robert, da Century Media, insistia que os lançamentos fossem feitos em vinil, porque era fã. Isso era bom, porque trabalho é algo sério, mas se começamos a perder o nosso lado infantil, a criança em nós, especialmente dentro da música, já começa a cheirar mal. Estou a sentir isso de novo. A alegria, através da banda, tem sido fulcral em tudo que aconteceu aqui. Já pensei muito nisso. Se não estivesse envolvido no projecto, se calhar o disco não estava na Atomic Fire, mas fico contente pela felicidade deles.
Obviamente que os Seventh Storm são a banda que o Mike Gaspar fundou. Apesar disso, quando se escuta o disco, pode pegar-se numa «The Reckoning» e ouve-se logo um baixo, depois as teclas e a guitarra. É um disco de banda e não só do Mike.
Claro que sim. A minha maior preocupação era mesmo essa, até gozava com eles por causa disso. O foco foi sempre na música, composição e instrumentos. Desde criança que adoro todos os instrumentos. Fui criado em Massachusetts, com um programa musical escolar incrível, em que tinha aulas de todos os instrumentos. Só não toco todos porque não tenho jeito para isso.
Cheguei a ter aulas de piano quando era mais novo. Sou fã de guitarras. Fui criado a ouvir Dokken, desde Cinderella a Van Halen, Motley Crue. É o meu lado infantil, de que falava, que me fez criar agora esta banda. Sendo baterista, sou quase como um fã, quero ouvir a parte dos teclados, a voz. É engraçado porque a voz entrou uns tempos mais tarde.
Já tínhamos iniciado o processo da banda, e alterámos o processo de composição por ela não estar lá. O foco era muitas vezes a música. Sou fã de discos em que os instrumentos se complementam, sem se repetirem. Tive esse cuidado, até nos tempos, para que surgissem naturalmente. Quando surge o vocalista, ele também toca guitarra e baixo, é grande fã do Dio e de coisas mais clássicas. O resto da banda tem um background hard rock, gostam de cenas como os Guns N’ Roses.
Só o Ben, na guitarra solo, é que escuta Opeth e Children Of Bodom. Bastou um ensaio, fizemos um jam e era tudo muito hard rock; depois, o Ben começou a fazer uns riffs a puxar para o black metal e fiquei muito intrigado. Havia alguns que me soavam a Bathory. Depois de ele dizer que vinha dessa escola dos Opeth, fiz a ligação – é claro que, sendo sueco, soava a Bathory.
Gostei de fazer essa ligação. De ter alguém com um som renovado, mas também com as mesmas referências que eu, quando fazíamos as nossas músicas, sempre com aquela influência subtil que era o Quorthon. Tentei manter essa referência, mas de forma subtil. Acho que ninguém vai ouvir e dizer que parece Bathory. No entanto, quando ouves as guitarras, está lá. O Ben é incrível, sempre a mandar riffs cá para fora. Tudo que me manda é mel. Nestes temas tens sempre emoção, algo importante na composição deste disco.
Emoção para evitar o automatismo…
Ou não passa de um exercício, que nunca foi o meu campo. Vindo do sul da Europa, tocando este tipo de música, mas com influências nórdicas, tentando misturar algo como o lado mais folk. Tem de ter emoção, ou estamos a perder tempo. Tem de se poder tocar ao vivo. Isso era outra componente importante na minha cabeça. Pensar como é que as coisas podem funcionar ao vivo.
Aquele meu amigo do México, como vai reagir? E o da Polónia? Não estava a fazer um disco a pensar especificamente neles, mas no que as pessoas sentem. Foi o que mais adorei quando tocava ao vivo, andar sempre pelo público, no merchandising. Tenho milhões de histórias, e é isso que faz a música crescer. Este álbum, até agora, só nós o conhecemos.
Está misturado desde Dezembro. Fizemos vários retoques. O Marcus ouviu e dizia que devia ter mais graves. A música hoje mudou muito, tens de ter uma mistura para o Spotify, com menos graves, mas quem vai comprar o vinil, ou o CD, quer o som todo, como é óbvio. Se conseguir meter os alemães a sorrir, o meu dia vai ser sempre perfeito.
Por teres uma nova banda, tens de voltar à estrada, necessitas de fazer concertos. Por outro lado, em off, falámos da tua família, de cuidares dela. Foram dois anos por perto.
Parte da vida da minha filha já se passou comigo na estrada. Recordo estar numa sessão de autógrafos no HardRockFestival quinze dias depois dela nascer, e meio confuso porque horas antes de ali estar, estava a mudar fraldas. Ainda fiz digressões longas, estava dois ou três meses fora e, quando chegava a casa, era outra miúda.
Com a pandemia todas as bandas passaram por essa experiência de ficar em casa durante dois anos. Foi uma coincidência quase divina porque, para mim, parou tudo, mas também parou para toda a gente. Deu-me imenso tempo para pensar tudo. Lançar um disco destes para uma banda dentro do ciclo normal de tournées é difícil. É preciso ter tempo para o fazer.
No outro dia, o dono do Spotify dizia que os artistas têm de fazer mais lançamentos, porque entre as tournées não ganham nada e a música é o teu ganha pão. Antigamente as coisas não eram tão intensas, tinhas mais tempo para viver a vida. Se como artista, não viver a vida, o que é que vou transmitir? É só o que passa na estrada? Estava a precisar de viver.
Vem agora a estrada?
Esse será o próximo grande passo. Não vou ter a máquina de estrada a que estava habituado. Vou ter de ver como é a reacção ao disco, as reviews. Se as pessoas gostarem vão comentar, até que as reacções chegam aos ouvidos dos promotores e vão começar a pedir para fazermos concertos. Foi assim no início da minha carreira, com o «Wolfheart», em que a Century Media nos colocava numa carrinha, por vezes um mês ou dois, sem dinheiro, nem nada. Isso aconteceu quando tinha 18 ou 19 anos.
Uma situação dessas agora é para ver passo a passo. É como a capa, que foi feita pelo Victor Jesus [ex-DECAYED]. Foi outro processo enorme. Ia ter com ele, uma ou duas vezes por semana, durante dois ou três meses, até chegar à imagem que queríamos.
Só quando estivemos certos de tudo, é que começou a fazer a pintura a óleo. Acompanhei o processo todo. Este disco é especial, porque tive cuidado e tempo para me dedicar a todos os elementos, todos os detalhes. Quando chegar a parte do “ao vivo”, também vai haver esse cuidado.