SEPULTURA

SEPULTURA: «BESTIAL DEVASTATION», a erupção que mudou a música extrema para sempre

Uma viagem ao passado dos SEPULTURA para compreender como um registo cru e selvagem se tornou uma referência incontornável décadas depois.

Quando se revisita a história do metal extremo, há momentos que funcionam como verdadeiros pontos de ignição — obras que não só capturam o espírito da sua época, como o distorcem, amplificam e redefinem. Entre elas, poucas têm o peso cultural e musical do «Bestial Devastation», o primeiro registo discográfico dos SEPULTURA, lançado em 1985, quando o Brasil fervilhava com uma cena metálica tão ingénua quanto brutal.

Numa América do Sul marcada por dificuldades económicas, instabilidade política e um isolamento cultural que tornava cada cassete trocada pelo correio num artefacto precioso, o metal brasileiro encontrou formas próprias de expressão, muitas vezes mais agressivas e viscerais do que aquilo que se fazia nos grandes centros musicais.

A segunda metade dos anos 80 trouxe ao mundo uma vaga de bandas brasileiras cuja crueza se tornaria lendária nos anos seguintes. Nomes como SARCOFAGO e HOLOCAUSTO incendiavam o underground com sonoridades sujas, rápidas e desafiadoras, construindo a reputação do país como um dos berços mais ruidosos do metal extremo.

Os SEPULTURA, porém, mesmo no seu estado embrionário, já eram outra coisa. Formados em 1984 em Belo Horizonte pelos irmãos Max e Igor Cavalera, acompanhados por Paulo Jr. e Jairo T., mostravam desde cedo uma inquietação que os afastava da caricatura de “mais uma banda barulhenta” do underground brasileiro. Inspirados por SLAYER e VENOM, mas também atentos às mutações extremas que começavam a surgir com DEATH, POSSESSED ou HELLHAMMER, moldaram uma identidade que cruzava thrash, death e black metal muito antes de essas fronteiras estéticas estarem totalmente definidas.

«Bestial Devastation» cristaliza esse momento de descoberta e explosão. O EP, composto por quatro faixas e uma intro, não procura virtuosismo nem polimento; pelo contrário, ergue-se precisamente na sua imperfeição bruta. Cada riff, saturado de distorção, cada batida irregular mas furiosa, cada vocal rasgado de Max, já prenuncia algo maior. Ouvir a «Necromancer» é mergulhar numa espiral de riffs sombrios, onde a secura da produção apenas amplifica a atmosfera lúgubre.

Na «Antichrist», o Igor deixa escapar rudimentos de blastbeats — numa altura em que o termo mal existia —, sinalizando uma intuição rítmica que mais tarde o tornaria um dos bateristas mais influentes do metal. A «Warriors Of Death» traz à tona um riffing torto, quase primitivo, mas extraordinariamente expressivo, enquanto o tema-título condensa a violência do EP numa descarga que ainda hoje soa urgente, guiada pelos grunhidos guturais de Max, numa altura em que aquele tipo de vocalização ainda não tinha nome, muito menos estatuto.

Em 1985, o thrash florescia nos Estados Unidos e na Europa, mas os SEPULTURA levaram o género para um território mais feroz, quase animalesco. O que faz do «Bestial Devastation» um marco não é apenas o som, mas como nele se adivinha a vontade de transgredir. Era um disco feito por adolescentes, num país periférico, com escassos recursos técnicos, mas que conseguia ultrapassar todos esses limites através de pura convicção e energia criativa. Não se tratava de seguir tendências: tratava-se de ultrapassar fronteiras — mesmo que sem plena consciência disso.

Os anos seguintes confirmariam essa intuição. O «Morbid Visions», o «Schizophrenia», o «Beneath The Remains» e «Arise» estabeleceram os SEPULTURA como uma força global, capaz de competir com qualquer banda europeia ou norte-americana, sem nunca abandonarem por completo a raiva e a urgência que marcavam os primeiros tempos. Até ao início da década de 90, cada álbum representou um salto técnico e estético, mostrando uma banda que crescia rapidamente sem perder a dureza que os distinguira desde o primeiro momento.

É claro que os caminhos mudaram. Em 1993, o «Chaos A.D.» trouxe uma abordagem mais rítmica e cadenciada, enquanto o «Roots», em 1996, mergulhou em fusões tribais que dividiram opiniões e assinalaram uma viragem profunda na identidade do grupo. A saída de Max, no mesmo ano, redefiniria para sempre o trajecto dos SEPULTURA, que prosseguiram com novo vocalista, mas com resultados artísticos inconsistentes na segunda metade da década.

Ainda assim, nada disto retira importância histórica ao «Bestial Devastation». Pelo contrário: esse pequeno EP de produção rudimentar continua a ser encarado como um dos registos mais violentos e influentes de sempre dentro do metal extremo. Não por questões técnicas — algo que os SEPULTURA só viria a dominar mais tarde —, mas pela sua força bruta, pela sua capacidade de sintetizar um momento e, ao mesmo tempo, apontar para um futuro ainda por inventar. As suas faixas, desprovidas de ornamentos ou complexidade excessiva, continuam a devastar tudo à sua volta e inauguram um período áureo não só para os SEPULTURA, mas para todo o metal extremo que viria a desenvolver-se na década seguinte.

Revisitar o «Bestial Devastation» tanto tempo depois é, portanto, regressar ao instante em que quatro jovens mineiros transformaram limitações em potência criativa. É recordar o ponto de partida de uma banda que, a partir da periferia global, sacudiu as fundações do metal e abriu caminho para gerações futuras. É, acima de tudo, perceber que alguns dos capítulos mais importantes da música pesada nasceram de circunstâncias adversas — e que, precisamente por isso, continuam a ressoar com uma intensidade que o tempo não consegue esbater.