Se a Oprah tem um, o gato do Amorim também.
O regresso dos Black Flag aos palcos representa a grande reunião de 2013, com tanto de surpreendente como polémico. Surpreendente porque nunca se pensaria que Greg Ginn aceitasse embarcar no comboio da nostalgia, especialmente com Ron Reyes como vocalista, e polémico porque, em simultâneo, surgem os Flag, com vários ex-membros ou outras pessoas incompatibilizadas com Greg Ginn, que não são nada poucas.
A importância dos Black Flag não pode ser menosprezada, seja em termos meramente musicais como também no que diz respeito à estrutura que desenvolveram à volta da banda e da sua editora, SST Records. Basicamente, os Black Flag criaram o underground da forma como hoje o conhecemos e os caminhos que desbravaram no início dos anos 80 são ainda hoje percorridos. Sem menosprezar os pioneiros do rock n’roll nos anos 50, com tournées com Elvis Presley, Jerry Lee Lewis ou Johnny Cash, documentadas no biopic «Walk The Line», Greg Ginn definiu as rotas a partir de cabines telefónicas de Hermosa Beach, através de contactos com bandas de diferentes locais que organizariam um concerto na sua cidade e disponibilizariam um chão para dormir, em troca do mesmo tratamento noutras cidades e estados. Esta rede espalhou-se por praticamente todo o território dos EUA e Canadá e as possibilidades de rotas geográficas foram praticamente todas desenvolvidas nesta altura, assentes numa lógica de proximidade geográfica e de rumo para outro destino ou de regresso à Califórnia.
Embora Stevie Chick não conte com o contributo directo dos seus dois protagonistas, sendo utilizadas apenas entrevistas de arquivo com Greg Ginn ou Henry Rollins, o seu mais duradouro e marcante vocalista, essa importância histórica encontra-se bem documentada nesta obra, apesar da leitura de «Get In The Van», de Henry Rollins, se revele mais reveladora sobre esses aspectos, sendo livro obrigatório para qualquer pessoa que pense ter uma banda ou que se interesse por música em geral, e que brevemente também terá de ser incluído neste clube selecto. Em discurso directo está Chuck Dukowski, injustiçado baixista que foi fundamental na banda, e também Keith Morris, que apesar de ter formado depois os Circle Jerks, continua a querer explorar ao máximo o facto de ter sido o vocalista do clássico EP «Nervous Breakdown».
Além da história da banda, com as inúmeras mudanças de formação quase invariavelmente por iniciativa de Ginn e do seu feitio especial, «Spray Paint The Walls» demonstra que os Black Flag estiveram na iminência de atingir algo de especial. Ginn cedo percebeu que haveria lugar para uma banda que fizesse o crossover entre o punk/hardcore e o metal com sucesso generalizado. Uma série de decisões erradas impediu que tal acontecesse com os Black Flag, sendo esse espaço preenchido mais a norte, com os Metallica em São Francisco, fazendo o crossover em sentido inverso. Mas Ginn sempre foi um visionário e, a dada altura, deu a sensação de que poderiam seguir essas pisadas, se quisessem, mas preferiram afastar-se do caminho do sucesso, enveredando por rumos musicais por muitos incompreendidos. Fala-se hoje com reverência dno lado B de «My War», que praticamente criou o sludge, mas foi na altura muito mal recebido e os caminhos jazzy percorridos em «Loose Nut» ou «In My Head» sempre foram demasiado à frente do seu tempo.
Outra questão que parece bem explorada nesta obra de Stevie Chick é a importância fundamental de Henry Rollins nos Black Flag. Talvez devido ao sucesso que foi tendo ao longo dos anos, com aparições em Holywood, um talk-show em nome próprio e todas as iniciativas em que se envolve, tornou-se moda menosprezar Rollins. Mas isso aconteceu desde o início, o miúdo que se mudou de Washington D.C. para Hermosa Beach para se tornar no vocalista na mais promissora banda punk do país, teve de lutar (no sentido literal do termo, muitas vezes) pelo seu espaço e tornar-se num dos mais intensos frontman da história do rock n’roll. Rolins tornou-se a figura central dos Black Flag, para grande incómodo de Ginn, que cedo percebeu que não o poderia substituir como fazia frequentemente com outros elementos, optando por acabar a banda em 1986.
Por isso, para quem não sabe a que se deve tanto falatório sobre o regresso dos Black Flag e a réplica Flag em 2013 e quer ficar a conhecer uma visão da história, «Spray Paint The Walls» é um bom documento mas que deixa a clara sensação de que cada um dos intervenientes terá uma visão muito própria e provavelmente antagónica sobre os factos. Neste clube, e sublinhando o empenho de Greg Ginn pelos direitos dos gatos de rua proporcionando-lhes um local digno para viver e alimentação, os Black Flag terão sempre lugar cativo.