É claro que, especialmente no lodo da internet, as primeiras coisas que se lêem quando se fala dos Scorpions são as piadinhas sobre a reforma que não aconteceu – porque a banda considerou isso uma vez há coisa de uma década – ou comentários jocosos sobre as idades dos músicos ou sobre as baladas açucaradas que foram fazendo parte decisiva do seu percurso a partir de certa altura. Mesmo sendo todas essas “pérolas” muito mais tentativas de ser engraçadinho do que propriamente argumentos, quanto mais válidos, a noite de ontem na Altice Arena foi o antídoto perfeito para as calar a todas. Desde o momento em que caíram os panos e a banda foi revelada, já em palco, já debaixo das luzes, como se sempre estivesse estado ali à nossa espera, não se detectou qualquer debilidade, física ou de outra ordem, em músicos que já atingiram as bonitas idades de 74 (Klaus Meine) ou 73 (Rudolph Schenker) anos, só para referir os mais velhos, que até são as principais forças motrizes do conjunto. A voz está “lá”, a performance também, o entusiasmo igualmente, e se o cansaço certamente também está, ainda para mais sendo esta a última data da parte europeia da tour (com um longo caminho norte-americano ainda pela frente), não influiu no que estes cinco cavalheiros fizeram em palco. E diga-se que o que fizeram também não foi coisa pouca – longe de se refugiarem em baladas, em clássicos que já saem em piloto automático, ou qualquer outro subterfúgio baseado na escolha dos temas, os Scorpions trouxeram o ROCK, numa quantidade que até nos arriscamos a dizer que já não traziam há algum tempo. O álbum mais recente que serve de suporte a esta digressão ajuda muito, de facto – «Rock Believer» pode não ser um clássico, porque dificilmente algo atingiria esse estatuto nesta altura da carreira da banda de Hanover, mas é seguro dizer que poucos estariam à espera de um trabalho cheio de malhas que já parecem emblemáticas na setlist, tanto pela carga simbólica do que afirmam liricamente, mas também pelas suas características antémicas, como são o tema-título ou a «Gas In The Tank» que já serve para abrir concertos, mesmo a dizer que sim, que o depósito ainda vai dando para uns quilómetros valentes. «Peacemaker» e o surpreendentemente pesado mid tempo de «Seventh Sun» completam o quarteto de novidades no alinhamento, e o melhor que se pode dizer delas é que ninguém se queixou da sua presença, bem pelo contrário.
Essa vibe roqueira e mais dura parece ter contagiado a banda, e até mesmo as restantes escolhas, tirando as “imutáveis”, claro, reflectem isso perfeitamente – «Bad Boys Running Wild», «Tease Me Please Me» ou «Big City Nights» foram largadas de forma enérgica e poderosa, perante o delírio da plateia que, diga-se, foi uma constante do princípio ao fim. O outro factor que contribui para esta vitalidade acrescida é mesmo o Mikkey Dee. Este miúdo de 58 anos (só o baixista Paweł Mąciwoda lhe “ganha”, com os seus exuberantes 55) que tem no currículo, por exemplo, cinco anos nos King Diamond e 23 nuns tais de Motörhead, encaixou que nem uma luva nesta fase da carreira dos Scorpions – nunca foi propriamente um virtuoso da técnica, mas a energia que traz e a presença retumbante que garante por trás da bateria parece ter rejuvenescido artisticamente os seus companheiros de forma notória. E claro, com Dee na formação, garante-se mais uns minutos de descanso para os mais veteranos, que se podem ir sentar um bocado lá atrás e beber uma águinha enquanto o bom do Mikkey se entretém com um extenso drum solo, que começou como um bass & drum solo mas que rapidamente o Paweł deixa para o rapaz lá de trás fazer a sua cena. Meio atabalhoado, é certo, mas com um power contagiante que, como é costume, deixou a audiência em polvorosa. Ainda para mais quando a animação digital para esse momento foi um Rock Believer Jackpot, uma imagem de uma slot machine em que um dos elementos pelo meio das frutinhas, dos sinos e dos 7s, a certa altura, era um Lemmy a apontar para nós. Bonito toque. Claro que o jackpot final eram cinco escorpiões que se transformaram em silhuetas dos elementos da banda. Um bocado azeiteiro? Claro que sim, tal como algumas das tais animações digitais específicas de cada tema eram de gosto gráfico ocasionalmente discutível, vá, mas no meio do big fucking rock show, temos que largar um bocado o cinismo analítico e perceber que tudo faz parte. E quando olhamos à volta e vemos milhares de pessoas, dos oito aos 80 – quase literalmente! – a delirar com tudo o que se passava, seria preciso ter mesmo um coração de pedra e não perceber nada do que o rock significa para não reconhecer a validade e a relevância dos Scorpions, mesmo em 2022.
O resto? O resto já vocês sabem mesmo sem terem ido. Mesmo num concerto um bocadinho diferente dos últimos, há coisas que nunca mudam, e ainda bem. Os isqueiros/telemóveis a encherem o pavilhão durante a «Send Me An Angel» ou a imortal «Still Loving You» (esta já em encore), a hilariante Flying V acústica do Schenker nesta última, a «Winds Of Change» adaptada aos tempos actuais que já não fala do Moskva nem de Gorky Park mas que tem a Ucrânia no coração, a «Rock You Like A Hurricane» a partir tudo no fim, mesmo depois de hora e meia de concerto, e as manifestações constantes de carinho para o público português do Meine, um “we love you Lisboa” que sabemos perfeitamente ter sido repetido nos outros sítios por onde passaram, mas que sentimos não ser por isso menos sincero. Um amor que é mútuo, e que não nos importamos de partilhar pela universalidade do rock que tão bem representa. E já que o senhor disse ao nosso Jorge Botas que “reforma” é uma palavra que os Scorpions já apagaram do seu dicionário, permitam-nos um “até á próxima” final.
FOTOS: Jorge Botas