Uma das coisas que vamos percebendo sobre a música, à medida que amadurecemos e, se tudo correr bem, formos expandindo os nossos horizontes, é que o “peso”, essa característica que tanto prezamos e que tantas vezes atribuímos com quase exclusividade ao género do metal que a maior parte de nós/vós tem como origem, pode ter muitas formas. Muito barulho, ou blastbeats incessantes, ou seja o que for, não constitui por si só peso musical. Sim, claro que as nossas bandas favoritas que usam esses factores são incomensuravelmente pesadas, e é assim que gostamos delas. Mas tal como um tipo aos gritos por cima de uma chinfrineira mal pensada só porque sim tem peso zero, também é possível algo atingir-nos que nem uma tonelada de tijolos sem ninguém levantar sequer a voz, ou ligar um instrumento que seja à corrente. Foi isso que aconteceu com os dois artistas que tomaram o palco da ZdB, os espanhóis Sangre de Muerdago e o sueco Jonathan Hultén, um par de luxo que teve nada menos que três datas da sua digressão em Portugal – no dia antes tinham tocado no Porto e hoje, dia 8, ainda passam por Barroselas a caminho da galiza natal dos primeiros.
Não é de estranhar que ambos tenham raízes em géneros mais extremos do que o folk (para usar um termo geral que englobe o som ainda assim bastante distinto de ambos) que actualmente praticam com tão bons – e tão pesados, na sua essência, lá está – resultados. Jonathan Hultén, como todos saberão, foi durante dezasseis anos guitarrista e força motriz criativa dos Tribulation, que explodiram em popularidade com o sublime «The Children Of The Night» de 2015. Já Pablo C. Ursusson, antes de montar esta trupe fascinante que o acompanha actualmente, fez parte dos crusters Ekkaia (e ainda que já durante o seu percurso folk, há que mencionar também os fantásticos Antlers, black metal atmosférico de qualidade superior). O percurso de ambos trouxe-os até onde estão agora, e a naturalidade e a fluência com que ambos interpretam a sua música dizem-nos que são ambos um bom exemplo de como se deve ser sempre verdadeiro àquilo que se sente artisticamente. Teria sido facílimo para Hultén, por exemplo, deixar-se estar confortavelmente nos Tribulation e ir levantando os cheques enquanto se deixava ir em piloto automático. Deixar uma banda com o estatuto considerável que os suecos atingiram e atirar-se numa carreira a solo de música, ainda por cima, nada óbvia, é de valor e só demonstra integridade assinalável.
Foi portanto a Hulténque coube abrir a noite, numa ZdB agradavelmente preenchida por um público bastante heterogéneo, e aquela figura andrógina e meio fantasmagórica nem sequer precisou de grande comunicação com o público para estabelecer uma ligação implícita. Um tímido olá ao fim de três temas, o próximo chama-se tal e tal, no fim adeusinho gostei muito e palmas para os Sangre de Muerdago, e está bom assim. Mesmo durante os temas em si, Hulténnão precisa de ser sempre verbal para a partilha de sentimentos e evocações – os na na na e os cânticos que compõem algumas das partes mais fascinantes de «Wasteland» ou «Östbjörka Brudlåt», por exemplo, batem-nos de forma tão ou mais directa que quaisquer palavras. Evocando quase sempre o espírito de Nick Drake, há um charme etéreo e algo fugidio tanto na sua música como na própria interpretação, como se do fumo do incenso se tivesse materializado uma figura que decidiu cantar-nos umas coisas, para se dissipar logo de seguida. E essa é a sua personalidade musical, que tanto está vincada no tema novo interpretado, como na sublime «…And The Pillars Tremble», recuperada do já longínquo EP de estreia de 2017, «The Dark Night Of The Soul». O “ohhh” de desilusão do público quando foi anunciado o último tema diz realmente tudo sobre a comunhão atingida por uma actuação magnífica.
E foi precisamente nesse espírito de comunhão que os Sangre de Muerdago centraram a sua prestação. Ainda mais à vontade do que é costume noutros países onde já o vimos, a figura central do quarteto, Pablo C. Ursusson, felicíssimo por poder falar em “portunhol”, como o próprio disse com um sorriso, é um contador de histórias nato. A sensação que temos é mesmo a de estar num qualquer bosque acolhedor, à noite, sentados à volta da fogueira, a ouvirmos os contos e as histórias do homem sábio. Quase todos os temas tiveram um preâmbulo explicativo sobre a sua origem e inspiração tão interessante como a própria música, e os pequenos discursos vão desde os mais pessoais (a canção de abertura, «Cadeliña», dedicada à sua amada e tristemente desaparecida cadelinha Pippiña, é de ir literalmente às lágrimas) até às lendas por trás de algumas danças tradicionais que foram adaptadas de uma ou outra forma e acabam por parecer que foram canções dos Sangre de Muerdago desde sempre. Principalmente aquela em que é evocado um pequeno Pablo que já em criança não queria ir à missa! Mas na verdade, é esse o fascínio principal deste grupo, a forma como conseguem estampar a sua personalidade em tudo o que tocam, e como essa personalidade é refrescantemente genuína e despretensiosa. Apesar de usarem instrumentos “tradicionais”, desde o hurdy–gurdy e a caixa de música de Pablo até à nyckelharpa de Georg Börner (já agora, a formação completa-se com Hanna Werth no violino e Mara Winter na flauta, e todos cantam em acompanhamento do seu “maestro”), e de basearem a temática da música essencialmente em antigas lendas e mitologia da região originária de Ursusson, a Galiza, não há nenhuma recusa explícita da modernidade nem nenhum gimmick que os deixe presos a qualquer era ou estilo. Um dos seus fãs famosos, o Steve Von Till dos Neurosis, chamou-lhes em tempos “modern, ancient and timeless“, ou seja, modernos, antigos e intemporais, e de facto, são isso tudo ao mesmo tempo. A sua actuação também soube evitar excessos, e mais uma vez o anúncio dos últimos temas foi brindado pelo “ohhh” desapontado do público. Always leave them wanting more, costuma-se dizer. Mas já foi o suficiente para nos deixar de alma cheia.
FOTOS: Estefânia Silva