O Rodrigo tinha um lado bipolar; recusava alinhar com o normal e com o mainstream, mas tinha uma ânsia incontrolável de ser reconhecido e ser visto como um rock star.
O Rodrigo deixou-nos. Deixou-se levar pela “vida maldita”; sem tempo para se despedir, mas deixando para trás um sem fim de boas (e más) recordações e histórias. Viveu como quis, viveu no limite e com as suas próprias regras. Sabia que podia correr mal (falava muitas vezes sobre isso), mas para ele meter a mudança abaixo não fazia sentido. Mesmo quando vinha com a conversa do mudar de vida e abrandar nos excessos, coisa em que apenas ele acreditava, mesmo que não por muito tempo. Conheci o Rodrigo circa 1994, nas ruas do Bairro Alto e do Cais do Sodré. Nessa altura ele tocava bateria na sua primeira banda punk/ crust, os MORTOS DE FOME.
Era com o vocalista da sua banda que se faziam os rituais de sexta-feira e sábado até de madrugada, por entre cerveja morta, moicanos espetados com sabão azul e branco, alfinetes-de-ama, t-shirts rasgadas, palavras de ordem anarquistas, muita ingenuidade e acima de tudo muitos risos e noites sem dormir.
Os anos 90 foram, sem dúvida, a época dourada do punk e do hardcore em Portugal, foram tempos vividos muito intensamente nas ruas, com muito fervor, paixão e genuinidade. Talvez por isso o Rodrigo se insurgisse, a maior parte das vezes da pior maneira, contra o estado do punk-rock nacional, contra a música de plástico e a falta de atitude.
Depois de alguns anos por caminhos paralelos voltámos a cruzar-nos no início dos anos 00. Dessa altura, fica uma história que exemplifica bem o que era o Rodrigo: depois de um jogo do seu Belenenses no Restelo, onde fomos ver a partida junto a amigos da Fúria Azul, e após um final de jogo conturbado, acabámos por apanhar um autocarro de volta na zona de Alcântara.
Entramos no autocarro completamente apinhado, mas o motorista apercebe-se que o Rodrigo não tinha passe ou bilhete e decide não arrancar enquanto o Rodrigo não sair. Os passageiros apercebem-se da situação e começam a ficar impacientes com a espera, sendo que o motorista se mantinha intransigente.
Eis que o Rodrigo se vira de braços abertos para o interior do autocarro onde nem mais uma mosca conseguia entrar e grita: “O povo é que manda! O povo é quem decide! Devo eu ir no autocarro?”… Ao que começa toda a gente a berrar: “Deixa o gajo entrar, caralho!”, “Anda lá com essa merda, deixa o chaval entrar!”. E seguimos viagem.
Em 2005, numa visita nocturna a um dos hotéis onde trabalhou como recepcionista, ali para os lados do Saldanha, convenceu-me a embarcar numa aventura perigosa de seu nome CLOCKWORK BOYS. Rapidamente foi despedido desse trabalho e durante algum tempo foi vigilante numa garagem de um condomínio na Quinta do Lambert.
Curiosamente também eu trabalhava a dois minutos dessa garagem, pelo que quando saía do meu emprego passava pela sua pequena sala à entrada da garagem, sendo aí que fizemos algumas das primeiras letras da banda. Os primeiros tempos foram um verdadeiro caos.
A ideia inicial era fazermos a primeira banda assumidamente Oi! nacional, pelo que temas como «Skins de Lisboa», «We Are Clockwork Boys» ou «Hippie Punk» eram um rastilho para ensaios inflamados onde soqueiras esfolavam as paredes de cortiça, machados voavam, sangue e suor escorria alimentado por muito álcool e drogas.
Por vezes, apareciam alguns amigos e os ensaios transformavam-se em autênticos concertos, a maior parte das vezes interrompidos pelos responsáveis do estúdio. As letras da banda não eram para impressionar, eram mesmo a nossa realidade. Vidas carregadas de sujidade, vadiagem, putaria, excessos, violência e bandidagem. E claro, o Rodrigo estava sempre na linha da frente.
Após gravarmos o primeiro EP «Rock Nas Cadeias», que acabou por sair na espanhola True Force Records em 2007, a banda trilhou outros caminhos e virou-se para sonoridades e imaginários mais punk´n´roll das barracas. Mas os excessos continuaram, as visitas a casas nocturnas de má fama prosseguiram e o Rodrigo entrou numa espiral de drogas duras que transformaram a sua vida num carrossel de altos e baixos.
Os concertos ao vivo eram particularmente caóticos e era comum cortar-se, qual GG Allin de Massamá. A primeira vez que fomos tocar a Sevilha o nosso gig limitou-se aos quatro temas do sound check. Antes de começarmos a tocar, desatou tudo à porrada e não nos deixaram ir para o palco. No entanto, o cachet foi pago na íntegra. O nosso amigo Rod entra num táxi com o guito na mão, vira-se para o taxista e diz: “leva-nos para el barrio mas podrido de Sevilha”. O taxista confuso pergunta: “como?!?”. Cobretti reforça: “queremos drogas e putas!!!”.
Esta queda natural para as vidas sujas reflectiam-se nas letras de Rodrigo, que não era o melhor letrista do mundo mas tinha um feeling muito puro e era carregado de boas ideias que não paravam de sair da sua cabeça. Quando não inventava, reciclava. Qual guitarrista que rouba riffs de outras bandas, o Rod acabava por mastigar muitas letras, em particular do baterista Branco, e até as suas próprias letras acabavam por ser recicladas para os seus outros projectos. Mas não é disso mesmo que se trata o punk?
Após a saída do primeiro álbum (que era na realidade a junção de três sessões) «Arquivo Vol.1», em 2009, através da minha Zerowork Records, com a ajuda da VDC do Hugo Conim e das Gravações Ultramarinas do também recentemente falecido João Veríssimo, os CLOCKWORK BOYS entraram em banho-maria, muito por culpa do feitio do Rodrigo. Antes disso, tínhamos feito a gravação do vídeo-clip de «Casino» no Bar Americano, no coração do Cais do Sodré.
Pagaram-se 20 paus a uma prostituta que se encontrava na rua em frente, para mostrar as mamas e curtir um pouco no vídeo. No final, a senhora gostou tanto do pessoal que pagou uma rodada de cerveja a toda a gente. Lá se foram os 20 paus.
A verdade é que o ego de Marion Cobretti sugava as energias de qualquer pessoa. A sua personalidade, mais que vincada, era muito intensa. Era como uma criança grande que tinha que ter atenção 24 horas por dia.
O Rodrigo aproveita então para extravasar toda a sua criatividade noutros projectos, fossem os FILHOS DA PUTA, os CAVALARIA 77 ou o seu projecto a solo MARION COBRETTI. Dá ainda asas ao blog “Rock Das Cadeias”, onde se dedica a promover o punk e o rock´n´roll mais fora da lei, assim como o KBD mais obscuro. Teve ainda o sonho de montar o seu selo, a Kobra Kai Records (nome roubado ao já referido João Veríssimo), onde a reboque de outras editoras meteu o carimbo em alguns dos seus lançamentos.
O Velez tinha uma espécie de íman. Era uma relação amor-ódio. Tinha tanto de insuportável como de bom coração. Acima de tudo, espalhava uma aura que fazia com que num momento lhe apetecesse espetar um murro na tromba e a seguir embarcar de cabeça numa qualquer maluqueira com ele. E assim, os CLOCKWORK BOYS voltaram para gravar aquele que, para mim, será o melhor álbum da banda: «A Dor Passa, O Ódio Fica», registado em 2011 e lançado pela True Force em 2012.
No seguimento do álbum, um dia de gravações para dois vídeo-clips: «A Dor Passa, O Ódio Fica» e «Vida Maldita». Quem esteve presente nesse dia, passou com certeza na Ajuda, um dos dias mais divertidos e caóticos da sua vida. Desde camas vomitadas a golden showers sobre o Rodrigo, valeu tudo… Até deu para se fazer um documentário com o bruto das filmagens, pelo Afonso Cortez e Luhuna Carvalho.
Documentário esse que se focava na marginalidade do Rodrigo e que era tão fora da caixa que foi banido das plataformas de partilha e foi rejeitado de forma escandalosa pelo Doclisboa. Isso, por um lado, deixava o Rodrigo revoltado e abatido, por outro deixava-o cheio de orgulho. Era sinal de que alguma coisa estava a ser bem-feita.
Havia este seu lado bipolar, recusava alinhar com o normal e com o mainstream. Mas tinha uma ânsia incontrolável de ser reconhecido e ser visto como um rock star. Após mais alguns concertos caóticos, entrei pela última vez em estúdio com os CLOCKWORK BOYS para gravar alguns temas que foram distribuídos em algumas compilações e nos splits com os MATA-RATOS e os ENGLISH DOGS.
Após essa gravação, apercebendo-me que a banda ia explodir na estrada e, tendo eu outras bandas e projectos, mas cada vez menos tempo, acabo por abandonar os droogs. O limite para a paciência com o Rod também já tinha esgotado há algum tempo e acabou por ser o pretexto perfeito para saltar fora do barco. A amizade com a banda obviamente continuou e o caminho paralelo também, fosse na estrada ou no campo editorial.
Os CLOCKWORK BOYS fizeram mais dois discos fantásticos e o Rodrigo, que tinha tanta coisa para dar, continuou a gravar com os seus outros projectos, inclusive um single em nome próprio dedicado ao seu clube, Os Belenenses.
A vida de Cobretti continuou num carrossel, com entradas e saídas de clínicas de reabilitação, com melhorias e recaídas. Mais recaídas que melhorias. Honra seja feita, o Rodrigo viveu cada letra que escreveu, fez o seu caminho da maneira que interpretou o punk que corria nas suas veias. Com ele o punk-rock representava perigo, não era acomodado como é para as novas gerações que tanto criticava.
Foi um rei das tascas, um príncipe das ruas, um amante da noite. O último dos moicanos, um bastião do rock´n´roll outlaw. Preferiu ser rei por um dia, que escravo a vida inteira. Com os CLOCKWORK BOYS conseguiu deixar a marca que tanto queria, abriu espaço para o punk mais provocante, mais explosivo e perigoso.
A sua vontade de deixar um legado dentro do punk-rock nacional era muito forte; no entanto, o seu ego e o prazer de querer viver no limite foi o seu maior obstáculo. O seu perfil egocêntrico acabou por afastar muitas pessoas do seu caminho. A vida no limite acabou por lhe pregar uma rasteira demasiado cedo. Vida maldita… O Rodrigo deixou-nos.