«Slaves Beneath The Sun», o mais recente longa-duração dos PROCESSOFGUILT, é, cima de tudo o resto, um álbum de refinamento, e de evolução controlada.
É seguro afirmar que os PROCESSOFGUILT (conforme o seu nome é estilizado já há algum tempo) já atingiram, por esta altura na sua carreira, um patamar de maturidade que está reservado, por norma, às bandas líderes, artisticamente falando, dos seus campos estilísticos, operam dentro dos parâmetros que elas próprias criaram, e já estão, tanto quanto possível, acima de quaisquer faux-pas que grupos “menores” possam enfrentar.
Assim, de repente, em Portugal, temos os Bizarra Locomotiva como outro bom exemplo deste estatuto, como poderíamos dar outros. Por mérito inteiramente próprio, são entidades que continuam o seu processo evolutivo, sim, nunca caíram na facilidade de fazer “sempre o mesmo” disco, mas que, ao mesmo tempo, têm uma solidez e uma personalidade bem definida, e dão garantias implícitas aos seus fãs, tanto quanto isso é possível, sobre aquilo que podem esperar a cada novo passo.
E é neste contexto que se deve abordar «Slaves Beneath The Sun», porque, tal como aconteceu com o «Álbum Negro» ou com o «Mortuário», por exemplo, para esticar um bocadinho mais a analogia – até porque mesmo sonoramente há pontos de contacto entre as duas bandas -, não há aqui nenhum momento de “pelo amor da santa, o que é isto agora?”, não no sentido de algo inesperado, ou alguma curveball que nunca tenha sido atirada nos trabalhos anteriores.
E que pode ser sempre, diga-se, dependendo do valor da banda e da sua capacidade aventureira, uma coisa boa ou uma coisa má. Mas tal como os dois últimos álbums da Locomotiva não só não sofreram por não terem também tido nenhum momento de choque inesperado, tendo-se mesmo tornado com o tempo dos mais emblemáticos da carreira do também quarteto, o mesmo acontecerá certamente com «Slaves Beneath The Sun».
Este é um álbum de refinamento, de evolução controlada. E de repetição e conquista. Se a primeira audição já dá uns veementes acenos de cabeça nos riffs mais gingões – e durante toda a «Scars», o tema mais imediato, porque aquela cadência é realmente imparável -, as subsequentes vão sendo cada vez mais entusiastas.
Verdade seja dita, quando tivermos finalmente assimilado todos os pormenores que subtilmente se revelam na paisagem aparentemente árida e monolítica do som da banda – que é muito mais “despido de merdas“, como os próprios descrevem, do que propriamente só despido, como muitas vezes também é apelidado – aí, sim, estamos prontos para ir ao próximo concerto dos PROCESSOFGUILT e perdermos as estribeiras com estes malhões, como já é habitual.
E que malhões, então? A resposta fácil é “todos”. No entanto, há destaques, sim, claramente. Mesmo com a solidez geral do álbum, e da produção spot on do princípio ao fim, cada vez também ela mais refinada e mais apropriada ao som do conjunto, com o equilíbrio certo entre clareza e crueza, há momentos altos. O início semi-tribal, numa toada crua e percussiva que de resto se mantém até final, com «Demons», a evocar o espírito imortal de um «Through Silver In Blood» se o Justin Broadrick decidisse fazer uma cover (“o JKB a tocar Neurosis dos 90s” seria, aliás, uma boa descrição de fundo, ainda que redutora, para todo o álbum) é um deles.
Depois temos a já mencionada «Scars», da qual não há escapatória, cuja ferocidade rasgada deliciaria tanto um Steve Austin (Today Is The Day) como um Matt Pike, e que servirá perfeitamente para atirar à cara de quem ainda achar que os PROCESSOFGUILT são “uma banda de doom” (anda para lá no mix, sim, mas já transcenderam o peso exclusivo dessa etiqueta há muito tempo), ou o final apoteótico com a intensidade quase incomportável do monstro de onze minutos que é «Host», que a certa altura próxima da sua conclusão até parece abater-se debaixo do seu próprio peso e degenerar em feedback, como se não aguentasse tanto riffalhão a ser batido até à exaustão.
Basta percorrer os álbuns anteriores para se perceber que esta banda tem um jeitinho especial para o “último tema”, e «Host» mantém facilmente essa tradição. Estes são os melhores momentos, os verdadeiramente brilhantes e que justificam a nota necessariamente gorda que este texto vai ter no fim. O resto, e que não se leia “resto” como filler, porque não é, também tem momentos de altíssima qualidade, e é mesmo por aí que se mede a qualidade de um álbum.
Há um nível abaixo do qual estas bandas “líderes” não descem, e mesmo os seus momentos mais corriqueiros – mais uma vez, sem a carga negativa que o termo poderia ter noutro contexto – seriam os pontos altos de uma entidade menor, ou pelo menos a caminho da tal maturidade que os PROCESSOFGUILT já atingiram há muito.
Se há questões, em relação aos momentos mais “tipicamente POG”, aqueles que poderiam estar no «Black Earth» ou até no «Fæmin» sem grandes sobressaltos? Sim, claro que sim, mas maioritariamente de fundo, e de planeamento futuro. O catch da maturidade é que, eventualmente, o edifício poderá ter que levar um abanão para evitar cair em repetição ou pelo menos em cansaço. Para já, ainda tudo resulta (e de que maneira!), a solidez é o mais importante, e os passos de refinamento são suficientes para tornar cada novo álbum no melhor da banda até à data, como se pode já afirmar sobre «Slaves Beneath The Sun» sem grandes discussões.
No entanto, esse estado de equilíbrio também não é eterno, nem para os deuses maiores. Tome-se por exemplo os Neurosis ou os Swans, claramente duas das maiores inspirações dos PROCESSOFGUILT actuais (juntamente com os Godflesh, diríamos que está feita a santíssima trindade), sobre os quais se poderá argumentar que, desde os pontos de culminação que foram «Given To The Rising» e «The Seer», respectivamente, não lhes faria mal um abanão a sério, coisa que nenhum dos álbuns subsequentes de ambas conseguiu (ou sequer tentou) ser, mesmo com a sua enorme qualidade inerente.
Veremos como será feita esta macro-gestão pelo quarteto nacional, mas só o facto de os estarmos a inserir neste campeonato de bandas, já revela bem que não é um problema assim tão terrível. E que o importante agora é mesmo aproveitar o glorioso presente proporcionado pelos malhões de «Slaves Beneath The Sun». [8.5]