Pelas características geográficas do nosso país, é bastante frequente que os concertos de bandas estrangeiras por cá sejam ou os primeiros, ou os últimos das respectivas tours. Há vantagens e desvantagens teóricas em ambos os casos – bandas frescas e cheias de entusiasmo mas ainda com eventuais arestas por limar quando são os primeiros, bandas cansadas e já a pensar no conforto caseiro mas já bem rodadas e “na batata” em termos de performance quando são os últimos. Pois bem, na noite de ontem na Sala Tejo, cheinha que nem um ovo diga-se de passagem, apanhámos ambos os conjuntos na última data de uma digressão “short and sweet“, como lhe chamou o Mikael Åkerfeldt numa das suas muitas e já habituais conversas com o público, mas tivemos o melhor dos dois mundos – sim, tudo “na batata”, quase em piloto automático mas sem a carga negativa com que usamos essa imagem normalmente, com os temas a fluirem dos músicos já quase por muscle memory, mas sem qualquer sinal de cansaço ou enfado. Alguma melancolia, talvez, como Åkerfeldt também referiu, até por ter sido uma tour especial na companhia dos “nossos heróis” e da “melhor banda com quem já andámos na estrada” (Åkerfeldt dixit, novamente), os grandes VOIVOD.
Foi realmente a abertura perfeita, e só não faz mais confusão os Voivod serem abertura de alguém porque de facto os Opeth são uma proposta comercial gigantesca hoje em dia. Mas é o próprio Mikael Åkerfeldt que já há muito tempo os indica como um dos pais espirituais do som que pratica, tendo já referido várias vezes em entrevistas e declarações, por exemplo aquando da morte do guitarrista fundador dos canadianos, Denis “Piggy” D’Amour, em 2005, que passou boa parte do liceu a ouvir o «Dimension Hatröss» obsessivamente. Não deixa de fazer alguma comichão aos mais velhotes de entre nós ver estes veteranos pioneiros reduzidos à utilização de uma pequena parte do palco e sem acesso a nenhum do sumptuoso jogo de luzes e projecções a que os headliners tiveram direito, mas tudo bem, a costela (que nem é uma costela, é mesmo um esqueleto inteiro) punk que está nas origens dos Voivod permite-lhes estarem-se a borrifar para isso e aparentemente divertirem-se imenso de qualquer forma, mesmo enfrentando um ambiente ainda meio frio no início da actuação, com muito público ainda a chegar e boa parte dos presentes meio distraídos. É que, como disse o Denis “Snake” Bélanger na sua primeira intervenção conversacional, “nós somos os Voivod e já andamos nisto há algum tempo.” Sabem bem o que estão a fazer e conhecem a riqueza do seu catálogo, e de facto bastaram os curtos (para aquilo que num mundo ideal teríamos) oito temas para o lendário quarteto canadiano, mesmo com todo este setup minimalista, pôr toda a gente a mexer. A tal riqueza de catálogo ficou patente nas oito escolhas – três temas do recente (e magnífico) «Synchro Anarchy», e depois uma selecção não tão óbvia como isso, ainda que bastante segura, de algumas pérolas espalhadas por vários álbuns. Contemplados foram então o inescapável «Dimension Hatröss» (com a «Experiment» de abertura, mas sem a habitual «Tribal Convictions», note-se), «Nothingface» («The Unknown Knows» e a cover de «Astronomy Domine» dos Pink Floyd), «The Outer Limits» («Fix My Heart») e «Angel Rat» (com a, essa sim habitual, «The Prow»). Como referimos, terreno seguro, tudo vindo daquele período dourado de 1988-93, com excepção óbvia dos temas novos, que encaixaram como se sempre lá tivessem estado, diga-se. Que regressem brevemente, e de preferência como cabeças de cartaz, porque os Voivod são importantes demais para ficarmos totalmente satisfeitos com esta prestação Voivod–lite, por boa que tenha sido.
Mas pronto, queixas de velhos à parte, a noite era mesmo dos OPETH, que apesar de tudo também já não vão propriamente para novos. Aliás, o propósito original desta digressão era mesmo o de celebrar os 30 anos de carreira. Por causa do que todos sabemos, acabou por ser uma celebração dos 30 (+2), mas tudo bem – o que interessava mesmo era a piada de assistir a um concerto diferente, já que a premissa era a de que o setlist foi escolhido pelos fãs, através de votação na internet. Uma ideia que o Mikael Åkerfeldt confessou odiar, o que acaba por ser consistente com as opiniões que tem expresso várias vezes em entrevistas – é muito bonito a malta estar sempre a exigir, especialmente na internet, aquelas malhas do antigamente que eles já raramente tocam, mas depois quando efectivamente lá desenterram uma, a verdade é que a reacção do público actual da banda é pouco mais que mortiça. Sim, há um ou dois tipos encostados ao bar lá atrás que levantam a cerveja e dizem “yeah!”, mas nada comparado com aquilo que os temas mais actuais provocam, por mais que isso faça confusão aos old schoolers. Apesar de a banda ter equilibrado essa questão adoptando a fórmula “uma música por cada álbum” – e assim foi, estritamente, treze temas em representação dos treze longa-duração da sua carreira -, essa clivagem, ainda que suavizada por essa abordagem astuta, foi ainda assim notória. Adoptámos um posicionamento estratégico de bancada precisamente para ter uma visão global da enchente humana que entupiu a Sala Tejo, e sim, comparando numericamente, relíquias deliciosas como «Eternal Rains Will Come» fazem nitidamente mexer menos gente. São os riscos corridos com esta “mixed bag of shit“, como Åkerfeldt jocosamente lhe chamou, mas apesar das quase-desculpas do carismático frontman (só esse tema foi chamado de “weird” seis ou sete vezes pelo próprio) a verdade é que o ambiente se manteve ainda assim sempre fervoroso quanto baste. Até um moshpit houve no final, imagine-se, durante a emblemática «Deliverance» de encerramento. Mas o ponto alto desta história dos votos foi, naturalmente, a presença de «Black Rose Immortal» como ponto mediano do concerto. Como Åkerfeldt explicou, foi de longe o tema mais votado pelos fãs, o que deverá ter surpreendido um total de zero pessoas, e lá tiveram então os suecos que aprender a tocar este monstro de vinte minutos ao vivo – e “aprender” aqui terá mesmo esse significado literal, já que da formação que o gravou para o «Morningrise» já só resta mesmo o Åkerfeldt. Nem o Mendez, o segundo mais antigo na banda, se tinha juntado a eles nessa altura. Pela subtil maior extensão das pausas entre as diversas partes deste épico, parecem tê-lo feito como se fossem cinco ou seis temas novos atirados lá para o meio do set, e para sermos honestos, é mesmo isso que aquela salganhada composicional é, vários temas enfiados uns nos outros que por alguma arte divina estranha se transformaram num todo de excelência improvável. Inesquecível, como terá sido para todas as outras audiências desta digressão, termos testemunhado as primeiras vezes que os Opeth tocaram esta faixa mítica, 26 anos depois de a termos ouvido pela primeira vez.
Falando do líder Åkerfeldt, já agora, poder-se-ia ter levantado previamente alguma apreensão por ter que regressar a uma maior frequência de rugidos, uma técnica vocal que já não pratica de forma continuada há bastantes anos, e apesar de naturalmente aquele roar animalesco que tanto nos impressionou nos anos 90 já não ter tanta exuberância, foi mais do que capaz de interpretar todas essas passagens sem grande problema. O que está igualzinho ao de sempre, é a sua relação com o público. Um mestre na arte da comunicação, vai tecendo comentários, interagindo com a malta, contando histórias, sempre com piada, mantendo uma entusiasmada ligação inquebrável que serve de fio condutor, algo ainda mais necessário neste prestação em particular, pela natureza heterogénea do setlist. Por diferente que uma «Allting Tar Slut» seja de uma «Demon Of The Fall», por exemplo, a verdade é que no final de contas é tudo Opeth, tudo faz sentido de alguma forma, e as clivagens acabaram por não ser assim tão fracturantes como isso. Poderá não ter sido a prestação mais brilhante da banda por cá, algo que já de si é difícil de medir em absoluto, mas aquela magia esotérica das primeiras duas visitas (enfim, quatro, porque ambas as passagens tiveram paragem em Lisboa e no Porto) no princípio do século no Hard Club antigo, no Paradise Garage e no esdrúxulo Clube Lua (onde mesmo espremidinhos uns contra os outros como sardinhas e com colunas à frente das fuças, nos divertimos imenso) é difícil de igualar, mas pelas características celebratórias, pela presença dos Voivod, e acima de tudo pela «Black Rose Immortal», será certamente uma das mais memoráveis. Ah! Dissémos que foram treze temas, mas não foram. Foram catorze. Aliás, quinze, para sermos exactos. É que antes do tal encerrar de noite com «Deliverance», a banda tocou uma cover. E mais, tocou-a duas vezes. Numa brincadeira que o Åkerfeldt disse que aconteceu porque havia um tipo com um papel a pedir (mas vá lá, nós temos internet e sabemos que tens feito isto nas outras datas, ó Mikael), interpretaram na íntegra os 1.316 segundos da «You Suffer», dos Napalm Death, tornando-se eventualmente na banda com maior diferença entre o tema mais longo (a «Black Rose Immortal» tem vinte minutos e catorze segundos) e o mais curto do set que já vimos, e deixando toda a gente a ir para casa com um sorriso no rosto. É isso que interessa.
FOTOS: Estefânia Silva