Que não se diga que os OBITUARY abandonaram os seus fãs durante a pandemia – esta sessão a que a LOUD! foi gentilmente convidada a assistir foi já a quinta desde que o mundo mudou para pior ainda, depois de terem tocado os dois primeiros álbums («Slowly We Rot» e «Cause Of Death») e um set de raridades no final do ano passado, coube agora lugar a mais dois “concertos” cibernéticos, um com algumas malhas seleccionadas pelos norte-americanos como suas favoritas, e este, no qual tocaram o seu terceiro álbum «The End Complete» na íntegra. Apesar de não ser propriamente um clássico incontornável, é um trabalho que ainda assim se mantém na nossa memória colectiva em termos de death metal dos 90s (foi editado a 21 de Abril de 1992), com dois ou três temas importantes na trajectória dos OBITUARY – essencialmente o tema-título, «Killing Time» ou «I’m In Pain», esta última a única que resta nos setlists mais recentes do grupo – e que, pormenor importante, ainda hoje é o álbum mais bem vendido (de longe!) da longa carreira da banda, tendo introduzido aquele famoso logo com os dragões e marcado, na altura, o regresso de Allen West para o que seria o seu segundo período na banda, de um total de três.
Pois bem, primeiros planos da performance, à hora marcada, num site criado para o efeito a funcionar na perfeição – até bilhetes bonitos em .pdf forneceram para quem os quiser imprimir como recordação –, mostram-nos a mesa de bilhar no centro da sala, coberta de tralha, alguns capacetes de futebol americano e fotografias/prints vários emoldurados nas paredes. Caixotes de Budweiser, e a bateria de Donald Tardy montada ao lado do frigorífico. É o ambiente muito caseiro do apropriadamente baptizado RedNeck Studio, em Gibsonton, subúrbio de Tampa, de onde a banda é originária. Um backdrop a tapar parte da parede, outro a fazer de fundo da bateria, mas no geral, pouco ou nenhum esforço de tornar a ocasião solene de forma alguma, como comprova a descontracção completa de John Tardy e Trevor Peres, ambos descalços e aparentemente acabados de rebolar do sofá para a sala de ensaio para tocar umas malhitas, nada mais que isso. Banter constante entre músicos, sempre com piadas e disparates vários. Só os dois membros mais “recentes” (entre aspas porque apesar disso já são ambos veteranos super experientes), o baixista Terry Butler e o guitarrista Ken Andrews, se mantiveram um pouquinho mais contidos e mais “vestidos para a ocasião”, sim, ma non troppo. A própria disposição física da banda, virados uns para os outros, “à ensaio”, denotou esse despretensiosismo total.
Se este cenário é bom ou mau, depende de cada um, e do que se pretende deste tipo de coisa – sinceramente, a título pessoal, para super-produções ou para concertos hiper-produzidos, já há DVDs e BluRays suficientes. Assim, tivemos uma perspectiva interessante do que é, efectivamente, a realidade do dia-a-dia dos OBITUARY. Deu a sensação que a única coisa que mudaram por estarem câmaras a gravar foi mesmo o Donald, o anfitrião designado, ir conversando com os ouvintes entre temas. No caso particular dos OBITUARY, um bando de “simple men”, como o próprio Donald os intitulou no fim da prestação, que sempre primaram por esta postura sem merdas, até mesmo a nível musical, tudo faz ainda mais sentido. E mais, toda a descontracção não quer dizer desleixo. Bem pelo contrário. Com a excepção ocasional de John Tardy, toda a banda esteve tão “na batata” quanto a ocasião permitiu, disparando os riffs pesadões destes nove temas com segurança e convicção.
Depois de uma «Redneck Stomp» só para descomprimir e esticar os dedos, e do primeiro olá do Donald Tardy ao seu público remoto, deu-se início ao «The End Complete» propriamente dito, altura em que fomos brindados com algumas animações baseadas no logo e na capa do álbum. Totalmente escusado, e felizmente durou pouco tempo – lá está, para ver bonecos, o YouTube chega bem e é grátis. Passou-se a «I’m In Pain» de forma competente, seguida da «Back To One», durante a parte mais lancinante da qual o John decidiu ir buscar uma das câmaras para se filmar a fazer uns piretes ao imperturbável Trevor Peres. Quem estava à espera de alguma solenidade, ou alguma atmosfera condizente com uma audição “séria” do álbum, por esta altura já devia ter desistido. Mas lá está – performance digna dos pergaminhos da banda, sendo apenas de apontar alguma falta de intensidade do seu vocalista. Antes de «Dead Silence», Donald Tardy anseia por mais uma Budweiser, mas diz que não tem autorização porque tem que se manter no topo da forma. Depois levanta-se e bebe na mesma. Não que se tenha notado algum downgrade, verdade seja dita. Tem também a sua primeira mudança de roupa, passando a envergar orgulhosamente uma bandeirosa t-shirt com a capa do «Bloodline», único álbum dos TARDY BROTHERS. Deve lá ter muitas em caixotes, que não é coisa para ter vendido milhões, dizemos nós. Dispara-se finalmente a tal «Dead Silence», com uma letra, digamos, aproximada, por parte do John (mais ainda do que o costume).
Na pausa antes de «In The End Of Life», o engenheiro de som de sempre, Mark Prator, é apresentado (ele que é de importância capital para a banda há décadas, e que nos créditos finais aparece, para além das tarefas “a sério”, designado como hair and makeup ou towel boy), e tenta perguntar aos músicos se há alguma história por trás do «The End Complete». Como simple men que são, a resposta vem logo de que não há história nenhuma. “1992, erva da boa, não me lembro da gravação porque estava muito nervoso,” remata Donald, fechando aí esse assunto. Peres admite no final do tema que deu um prego numa nota do riff inicial, mas está tudo bem. Passa-se para a rapidíssima (para os standards dos OBITUARY) «Sickness», que encerra o lado A, que até leva o Mark Prator a perguntar “quem é que escreveu esta malha, mesmo?”, e apesar de rezar a lenda que é uma obra conjunta entre os dois Tardys e o Trevor Peres, por esta altura já se bebeu Budweiser suficiente para ninguém se lembrar disso.
Depois da, de facto, corrosiva «Corrosive», Donald tem o seu segundo wardrobe change e volta, misericordiosamente, para uma t-shirt mais minimalista só com o logo dos OBITUARY. Segue-se um implorar jocoso, mas ao mesmo tempo talvez a coisa mais séria que foi dita a noite toda, de John directamente para a câmara – “deixem-me voltar para a estrada, por favor!”, o que despoleta várias ideias de como poderíamos voltar já aos concertos, desde a sugestão de toda a gente usar fatos hazmat de protecção química, até irmos todos dentro daquelas bolas de isolamento tipo hamster. Nunca se sabe, nesta altura já tudo nos parece boa ideia. Segue-se então um dos hits, «Killing Time», e fica a sugestão de Donald de dançarmos um bocadinho com ela. O groove gigante assim o pede, realmente.
Já na recta final, Donald volta a endereçar o público e implora para que ninguém parta a mobília lá de casa com o estrondoso tema-título, e tal foi o balanço com que nele entraram que a certa altura o John teve mesmo que saltar dois versos porque já não tinha ar nos pulmões para isso. Pediu desculpa no fim, e um exasperado Donald diz que não se voltam a meter numa destas. A brincar, a brincar, mas se calhar cinco já chegam, sim. «Rotting Ass», perdão, «Rotting Ways» (damn you, Trevor!) encerrou a função num registo semelhante de competência, restando para conclusão os brindes e abracinhos merecidos, e uma sentida despedida: “não queremos estar a fazer isto em frente a câmaras, queremos voltar a estar com vocês!”, implora o baterista. São vocês e nós, Donald.