Muito se tem escrito sofre o impacto que, desde Março, a pandemia do novo Coronavírus está a ter em milhares de músicos, equipas técnicas e salas de espectáculos ao redor do mundo. Pois é, por esta altura ninguém pode negar que 2020 tem sido um ano terrível para a música ao vivo e, sete meses depois, com uma indústria indefinidamente à espera de retomar a sua actividade, não é estranho que toda gente ande à procura de alternativas, com muitos dos afectados a optarem pelas transmissões ao vivo, que – bem vistas as coisas – são uma das únicas formas que as bandas e os seus seguidores têm actualmente de se aproximar de uma experiência semelhante à de um concerto “ao vivo”. O conceito de ir a um espectáculo, algo que até há pouco tempo todos dávamos como garantido e que é o sustento de muita gente, desapareceu de um dia para o outro. O espírito impulsionador e de comunidade, que é uma espécie de religião para os metalheads em todo o mundo, desvaneceu-se num flash.
Nestes últimos tempos, muitos músicos e artistas têm feito tudo o que está ao seu alcance para se manterem activos e relevantes. Convenhamos, apesar de terem muito de negativo, as redes socais ofereceram uma janela para a música continuar a ouvir-se e para os fãs se conectarem de diferentes formas com os seus favoritos. Nos últimos meses muito foi feito com a capacidade de uma simples sala de estar e de um computador, e tem sido incrível ver os mais variados nomes, dos METALLICA aos LAMB OF GOD, passando pelos MASTODON, SEPULTURA ou CHELSEA WOLFE, entre muitos outros, a fazerem versões em quarentena e a darem largas à sua criatividade num momento que, à partida, poderia não parecer muito propício para tal. No entanto, essas “brincadeiras” pouco ou nenhum dinheiro trazem para quem vive disto, por isso os músicos começaram a virar-se para as transmissões ao vivo e para a criação de momentos singulares, cujo acesso justifica o pagamento de bilhete por parte dos fãs.
Hoje estamos aqui a convite dos OBITUARY e do Frank Van Liempd, da Petting Zoo Propaganda, para assistir ao segundo de três livestreams anunciados pela lendária banda de death metal para os meses de Outubro e Novembro. Infelizmente não estamos em Tampa, na Florida, estamos mesmo na sala de estar, mas pelo menos vamos ver a banda formada Jon Tardy na voz, Trevor Peres e Kenny Andrews nas guitarras, Terry Butler no baixo e Donald Tardy na bateria a tocar o clássico «Cause Of Death» na íntegra. E, a três horas do início do espectáculo, já está “aqui” gente das mais variadas proveniências a fazer “fila”: holandeses, alemães, ingleses, chilenos, checos, franceses, finlandeses, norte-americanos, islandeses, costa-riquenhos, portugueses, canadianos, escoceses, suecos, entre muitos outros. É lógico que ninguém se vai cruzar no bar nem na casa de banho, as conversas e os aplausos estão relegados a uma janela de chat, mas o sentimento é generalizado: os 15 dólares pagos pelo bilhete vão valer bem a pena para assistir “ao vivo” a uma das sequências mais intocáveis da história da música extrema.
Cerca de dez minutos depois da hora marcada, a banda entra em palco e, sem conversas, ataca a «Infected»… Aos soluços. Falsa partida, portanto. Torna-se rapidamente óbvio que há um problema com o áudio do stream e a janela do lado direito do ecrã enche-se de mensagens: “The audio is chopped in half”, diz alguém bem humorado. Convenhamos, isto não é nada que não pudesse acontecer num concerto a sério e, vinte minutos depois, o problema está resolvido e a banda dá início à actuação. «Infected» e «Body Bag» dão início à prestação, mostrando desde logo que, afinal, o som vai estar tão definido e equilibrado quando se poderia esperar de uma ocasião deste género. O rugido ameaçador de Jon Tardy salta das colunas para nos agarrar sem aviso pelo colarinho da t-shirt. Os riffs do Trevor Peres – sempre tão focado nas seis cordas como no seu headbanging violento – não dão tréguas e abanam-nos violentamente. O “novato” Kenny Andrews recria, sem mácula e com classe, os solos de James Murphy. E, claro, o balanço pesadão também está todo no sítio, assegurado de forma quase cirúrgica pela secção rítmica de luxo formada por Terry Butler e Donald Tardy, que fez as despesas da comunicação com o público durante toda a transmissão. O alinhamento – à semelhança do que já se tinha passado no Decibel Metal & Beer Fest, em 2019 – segue o álbum de 1990 à risca e revela-se intocável, prosseguindo com uma sequência de clássicos a que nenhum fã da banda, ou deste tipo de som, pode apontar o dedo. «Chopped In Half», a incontornável versão de «Circle Of The Tyrants», dos CELTIC FROST, sempre fiel ao original, mas com o dobro do peso e um incremento de velocidade, «Dying», uma rápida «Find The Arise», «Cause Of Death», «Memories Remain» e, para fechar em beleza, uma explosiva interpretação da «Turned Inside Out». Depois dos agradecimentos, que incluíram vários “obrigado”, tempo ainda para um encore com «Straight To Hell» (dedicada ao bateria Gus Rios, dos GRUESOME), «Threatening Skies», «By The Light» e, para fechar de vez, «I’m In Pain».
No que ao “espectáculo” propriamente dito diz respeito não há grande coisa a acrescentar. Esta é daquelas bandas que nunca cedeu a pretensiosismos e, se os BEHEMOTH ou o COREY TAYLOR trataram de elevar o nível deste tipo de experiência a um patamar superior com as suas mega produções recentes, neste caso o que temos é um bom espectáculo de luzes, um backdrop gigante com o inconfundível logótipo do grupo, uns painéis com a arte da capa do álbum que comemora três décadas este ano e pouco mais. No entanto, o alinhamento e a força do som são mais que suficientes para percebermos que, mais de duas décadas depois de terem dado os primeiros passos, os OBITUARY continuam a manter a mesma vitalidade e que, com o seu groove simples e abrutalhado, apoiado numa boa dose de disposição redneck, este espectáculo, em 2020, num clube pequeno em qualquer parte do mundo, provocaria um frenesim de headbanging e mosh digno que nos fazer viajar até aos primórdios do death metal.
Essa não será, no entanto, a única conclusão a tirar desta situação. A experiência de assistir a um concerto, ainda por cima de death metal, no conforto do sofá é muito, mesmo muito, diferente do real deal. Sem empurrões, sem ter de acotovelar uma dezena de pessoas para ir buscar uma cerveja ao bar, sem aquele habitual cheiro a ginásio e, sobretudo, sem sentir o bafo dos amplificadores no peito, pura e simplesmente não é a mesma coisa. Não adianta sequer dourar a pílula, porque ninguém no seu perfeito juízo pode pensar que o futuro da música ao vivo passa por este género de experiência. No entanto, com o Coronavírus a não mostrar sinais de querer sair das nossas vidas nos tempos mais próximos, a questão acaba por ir bastante além de nossa/vossa satisfação pessoal e, embora imperfeitos, não há como negar que os livestreams têm ajudado a aumentar o income dos artistas, mantendo-os à tona numa altura em que estão privados de lucrar com vendas de merchandise e bilhetes para os espectáculos. Isso, por si só, já é de louvar. Portanto, se puderem, apareçam para ver os OBITUARY no próximo dia 7 de Novembro – os ingressos continuam disponíveis aqui.