É tramado ter que descrever música com palavras, e sim, é esquisito isto ser dito por um gajo cujo emprego consiste essencialmente de, erm, descrever música com palavras. Não me estou a queixar, e continuo a nutrir o mesmo fascínio de sempre pela actividade – o facto de podermos instigar o cérebro de outra pessoa a imaginar sons que ainda não ouviu, sem emitirmos nós próprios um único som e apenas através de um molho de caracteres escritos, é, se pensarmos bem nisso, uma capacidade humana incrível. Mas tem pitfalls, também, porque as palavras têm vida dinâmica, não são um tijolo estanque, e começam a ganhar novos significados à medida que as vamos utilizando repetidamente para descrever ou adjectivar qualquer coisa. Metam-se na vossa máquina do tempo e digam a um chaval qualquer de 1989 que têm “new metal“. Provavelmente vai ficar excitado, mostra lá então, boa cena. Façam a mesma coisa a um de 2010 (felizmente, a horrenda grafia de “nu” não se pronuncia de forma diferente) e ele ainda vos enfia o return pad nas ventas e ficam presos num qualquer hilariante episódio do Family Guy. Mas vá, já chega. Esta converseta filosófica toda é só para dizer que este disco de death metal sobre o qual me apeteceu escrever hoje é atmosférico, ok? Só que não é atmosférico da maneira como vocês interpretam a palavra “atmosférico” hoje em dia, e daí a necessidade do preâmbulo. Atmosférico remete logo para um disco sonolento qualquer dos Alcest, ou para o black metal atmosférico dos Wolves In The Throne Room (com sorte) ou dos últimos discos dos Agalloch (já com um bocado de azar, diga-se). Não, não é nada disso que se passa aqui. «With Inexorable Suffering» é bruto e rude, é selvagem, é frenético e é caótico. Só que não é só isso, e é isso que o torna tão fascinante, são as outras coisas que o elevam ao estatuto eventual (ainda estou a decidir, dêem-me dois meses) de melhor disco de death metal deste ano.
Ao contrário dos incríveis Infernal Coil, de quem falei na já longínqua primeira iteração desta rubrica (eu avisei que ia ser de periodicidade irregular), não se trata de um disco de estreia. Ainda que ambas as bandas tenham o mesmo ano de formação (2014), os OUR PLACE OF WORSHIP IS SILENCE (que é, já para começar, um nome do caralhão, não é?) já têm um «The Embodiment Of Hate» de 2016 como primeiro degrau, e confesso que não o conhecia quando dei uma escutadela a este novo. Desde então, e porque esta coisa se apoderou de mim como uma matilha de lobos se apoderaria de uma pilha de bifes mal passados, já fui investigar, e sendo um rico disco também, a evolução sofrida é estrondosa. Terá tido o seu quê de espinhosa, sim, com a saída do vocalista Justin Moore e com uma tragédia pelo meio (o baixista Tim Butcher faleceu em 2015), tendo deixado na formação apenas o baterista Tim Gaskin e o guitarrista Eric Netto. Mas em vez de completar a banda com mais gente – e aqui já se começa um bocado a perceber a estirpe desta gente – os bons do Tim e do Eric acharam que bandas são para fracos, e atiraram-se para esta empreitada sozinhos. Ambos partilham tarefas vocais, e ambos parecem ursos feridos mortalmente a tentar esventrar quem quer que lhes apareça à frente, num registo sufocado, arrastado e torturado/torturante que deixa mossa, e o Eric gravou também o baixo. Não constam baixistas de sessão na formação indicada no Metal Archives, e tanto no Facebook (onde têm um total de três posts publicados) como no Bandcamp da banda eles escusam-se a dar qualquer tipo de informação, por isso vamos assumir que continuam só a ser os dois, e que alguma coisa vai ser feita a respeito dos concertos, porque é do interesse da música extrema e do bom gosto em geral que esta gente comece a tocar por aí.
No tal Facebook deliciosamente lacónico, ainda se aventuram a chamar a isto death metal / black metal, mas sejamos claros que isto é death metal a sério. A contundência e a brutalidade não deixam qualquer tipo de dúvidas, bem como a aproximação vocal e o tipo de riffs anafados que vão largando. O que é brilhante aqui é a forma como conseguem, simultaneamente, atingir em cheio o melhor que os vários tipos de death metal têm, e que frequentemente são vistos como características mutuamente exclusivas. Por um lado, é facílimo pôr este disco a tocar só numa de porrada. Ainda que a toada não seja ultra-rápida, tem pedalada suficiente para estar em constante headbang, e a intensidade da selvajaria é tal que mesmo ouvindo distraídamente dá para ir enfiando umas chapadas seja em quem for que tenha a triste ideia de estar a ouvir ao nosso lado. Mas por outro lado, apurando um bocadinho a audição, lá aparece a merda da atmosfera para falarmos dela – sendo música de porrada, isto também é música envolvente, é música que evoca imagens e histórias, é música que absorve. Os tais riffs são abrutalhados, sim, mas são dissonantes e enrolados (think Gorguts, think Morbid Angel antigo, think Voivod se fossem death metal), e têm uma relação simbiótica com os estonteantes ritmos de bateria de tal ordem que prova que isto não foi só estar enfiado numa cave a fazer barulho, há pensamento a sério por trás desta composição.
Quando assim é, as lamúrias com que vos brindo habitualmente de que uma malha qualquer “é grande demais”, ou que não sei quem “precisava de quem os editasse” nem fazem sentido. Certo, a duração total do disco são uns prudentes e sábios 34 minutos, mas há malhões de cinco («Labyrinth Disorientation») e oito («Lawlessness Will Abound») minutos nos quais não se dá pelo tempo passar, têm exactamente o mesmo impacto das mais curtas, senão mais – essa última é até a minha favorita pessoal, e se fosse eu a mandar, o videoclip era dessa. Mas também ficou bem entregue à «Artificial Purgatory», que tem menos de três minutos, e assim os miúdos, ou os velhos, ou seja lá quem de vocês é que ouve mais música de merda, já clicam sem medos e ouvem sem se aborrecer, e a vida e o gosto deles melhora um bocadinho.
De que é que isto tudo trata? Sei lá, man. Hei-de os entrevistar e perguntar. Que faz sofrer, lá isso faz, ainda que deliciosamente, por isso pelo menos cumpre o que promete no título. Deve ser um horror cósmico-niilista qualquer, e está bem assim. Ou vocês também conseguem explicar detalhadamente de que é que tratam os discos dos Blood Incantation e outros do tipo? O Eric diz no press release uma cena do género “Man is within the fall and we hold this truth to be self evident; clenched within this record is our rebuttal.“, portanto tirem daí o que quiserem. Já eu, vou ouvir isto outra vez antes de jantar e dar uns murros na parede. 34 minutos passam num instante.