O encerramento do MUSICBOX expõe as contradições de uma cidade que sacrifica a sua vitalidade cultural em nome do turismo e da especulação.
O Musicbox fechou. A notícia, há muito sussurrada, tornou-se inevitável e foi eventualmente confirmada de forma oficial por Gonçalo Riscado, um dos fundadores da sala, num comunicado que todos deviam ler com atenção. Mais do que o fim de um espaço cultural, este encerramento é um diagnóstico de Lisboa: uma cidade que se orgulha da sua imagem cosmopolita, mas que está a perder aquilo que a tornou viva.
Inaugurado em 2006, no subsolo do Cais do Sodré, o Musicbox foi uma aposta visionária num bairro então marginalizado, marcado pela decadência e pelo abandono. A ideia era arriscada: abrir uma sala de concertos alternativa no coração de um espaço conotado com a boémia mais sombria. Esse risco pagou-se em forma de história.
Durante quase duas décadas, o clube programou centenas de concertos e DJ sets por ano, recebeu uns bons milhares de artistas e quase dois milhões de espectadores. Foi uma escola de descoberta para o público e um trampolim para muitos músicos. Foi também um farol internacional, trazendo a Lisboa artistas que só muito mais tarde se tornariam grandes nomes globais. No entanto, não foi apenas isso. O Musicbox representava um certo ideal de cidade: aberta, criativa, experimental, onde a cultura não era vista como um acessório, mas como motor de transformação. Esse ideal, no entanto, esbarrou com a realidade da Lisboa do século XXI.
No comunicado que referimos em cima, Gonçalo Riscado escreve: “Lisboa apostou excessivamente num modelo ilusório de crescimento, assente no turismo, na especulação imobiliária e na atracção de residentes temporários com rendimentos elevados, um caminho que está a destruir o maior activo da cidade: quem nela vive e nela se expressa culturalmente”. É difícil imaginar uma acusação mais certeira.
O que está em causa não é apenas o encerramento de uma sala de concertos. É a expulsão gradual da vida cultural autêntica do centro da cidade. Primeiro foram as associações e colectivos de bairro; depois, as casas independentes de criação; agora, até espaços com a relevância e o impacto do Musicbox se tornam insustentáveis. A gentrificação cumpre sempre o mesmo ciclo: a cultura independente chega, revitaliza, dá identidade; a especulação segue-lhe o rasto, encarece o bairro e expulsa aqueles que o tornaram desejável. Lisboa está a repetir, em ritmo acelerado, uma história já conhecida em cidades como Barcelona, Londres ou Berlim.
No entanto, há aqui um problema mais profundo: a passividade política com que este processo tem sido encarado. A cidade é tratada como um produto turístico, desenhada para o olhar do visitante temporário, mas sem políticas estruturais de habitação ou de cultura que permitam que os habitantes permaneçam. É o triunfo da “cidade-espetáculo” sobre a “cidade-comunidade”.
Ao longo de quase duas décadas, o Musicbox tornou-se central para a música portuguesa. Foi lá que os Linda Martini consolidaram a sua ligação ao público, que os Capitão Fausto começaram a dar passos largos, que B Fachada e Samuel Úria encontraram um palco disponível. Foi também no subterrâneo do Cais do Sodré que nomes como Mac DeMarco, King Krule, Anderson .Paak ou Seun Kuti tocaram para plateias reduzidas, em concertos que hoje parecem impossíveis de repetir.
A sala foi mais do que um palco: foi uma escola de risco. Programava artistas antes de estarem na moda, apostava em propostas marginais, dava espaço à experimentação. Não era apenas entretenimento — era cultura viva, que não se mede em bilhetes vendidos, mas em ligações criadas, em comunidades geradas, em identidades construídas.
E, no entanto, ao fim de 19 anos, o que resta são números. Cem mil espectadores por ano, dois milhões no total. Mas o próprio comunicado reconhece: “Os números do Musicbox pouco significam perante o desaparecimento de tantas associações e espaços culturais”. Essa frase devia ecoar nas paredes da Câmara Municipal de Lisboa. Porque não se trata de estatísticas — trata-se da alma de uma cidade.
O futuro é a Casa Capitão, no Beato Innovation District. Um centro cultural multidisciplinar, aberto a todas as idades, onde a programação do Musicbox e a sua equipa continuarão. É um gesto de sobrevivência e de reinvenção. Como escreve Gonçalo Riscado, “Em 2006, arriscámos ao abrir o Musicbox no Cais do Sodré. Em 2025, arriscamos tudo na Casa Capitão, no Beato. Poder arriscar assim é um privilégio”.
Mas este futuro tem uma sombra: a cultura independente foi expulsa do centro e deslocada para a periferia reabilitada, sob a retórica da inovação. É um paradoxo cruel: o Musicbox, que ajudou a transformar o Cais do Sodré, já não tem lugar nesse mesmo bairro. O Beato pode vir a ser fértil para novas experiências, mas o gesto simbólico é claro — o coração da cidade tornou-se inacessível à cultura que lhe deu vida.
É precisamente aqui que a discussão precisa de subir de tom. O encerramento do Musicbox não deve ser apenas lamentado; deve ser entendido como consequência directa de políticas que privilegiam o turismo e o investimento imobiliário em detrimento da habitação acessível e da cultura de base. O comunicado não poupa nas palavras: “Defender o direito à cidade e os direitos culturais deve ser uma luta colectiva”.
Essa luta não pode ser adiada. Estamos a menos de dois meses das eleições autárquicas, e a cultura não pode continuar a ser tratada apenas como um ornamento nos programas eleitorais. É necessário exigir compromissos claros: habitação que permita a fixação de artistas e trabalhadores culturais; espaços mais acessíveis que não sejam engolidos pela especulação; apoios estruturais a salas independentes que fazem o trabalho que o Estado não faz.
O Musicbox foi, durante quase duas décadas, um laboratório vivo de Lisboa. O seu encerramento deixa-nos uma pergunta inevitável: que cidade queremos? Uma Lisboa transformada em vitrine para turistas e investidores, onde a vida cultural autêntica só resiste em margens cada vez mais estreitas? Ou uma Lisboa viva, onde a cultura não é apenas entretenimento, mas condição de cidadania?
A resposta não está apenas nas mãos dos programadores, dos músicos ou do público. Está nas mãos de quem governa a cidade e de quem nela habita. O Musicbox vai fechar as suas portas, mas o que está verdadeiramente em jogo é se Lisboa fecha também a sua capacidade de ser mais do que cenário. No dia em que as luzes se apagarem pela última vez no Cais do Sodré, não se encerrará apenas uma sala de concertos. Encerrará uma ideia de cidade.















