MANILLA ROAD
«Crystal Logic»
[Roadster Records, 1983]
A Missa Ortodoxa dedica-se sobretudo a lembrar pérolas mais ou menos obscuras do heavy metal no seu sentido lato, pelo que as coisas que aqui aparecem são por via de regra pouco conhecidas da generalidade do público dedicado ao som pesado. Porém, hoje impõe-se com trágica firmeza uma homenagem a uma figura essencial. Caiu o nome maior do epic power metal. Após um concerto no festival alemão Headbangers Open air, a 27 de Julho passado, Mark Shelton, dos Manilla Road, morreu nos braços de Bryan “Hellroadie” Patrick, companheiro de armas desde há quase duas décadas. Não consigo deixar de achar que foi uma morte apropriada, assim à saída do palco. Pois ecoa de forma pungentemente simbólica a morte em combate necessária para aceder aos portões do Valhalla na mitologia escandinava, tão presente nas letras dos Manilla Road, pródigas em contos de bravura, de exploração, e tão inspiradas em autores como Poe, Lovecraft, Howard, verdadeiros marcadores culturais da época por excelência do power metal com glândulas seminais. O que mais custa é que Mark “The Shark” tinha apenas 60 anos e ainda muito para dar, além de ser uma figura ímpar no meio metálico, uma figura lendária porém de espantosa humildade, acessível a todos os fãs, e sempre com uma palavra de reconhecimento para com o amplo universo de apoiantes do underground metálico que, como costumava dizer, lhe tinham dado tanto.
Mas Mark Shelton e os Manilla Road também deram muitíssimo ao heavy metal. Com uma história que principia em 1980 com o álbum «Invasion» e se prolonga até «To Kill A King», do ano passado, ao longo de tantos álbuns e tão bons, além dos projectos Hellwell e Circus Maximus, não é fácil ter de escolher um lançamento que represente a variada e musicalmente brilhante carreira de Mark Shelton. Optemos pois pelo mais óbvio e tragamos à távola o Santo Graal do epic metal, o mega clássico terceiro álbum «Crystal Logic», lançado em 1983 e primeiro de uma vertiginosa sucessão de discos verdadeiramente extraordinários que durou até o dealbar da década seguinte. Neste período se gerou a magna obra dos Manilla Road, que não lhes deu o sucesso merecido e que outras bandas da altura com menos mérito atingiram, mas que lhes permitiu todavia virem a transformar-se na banda principal para uma aguerrida e militante rede underground de metálicos que, atingido o novo milénio, defendiam com unhas, dentes e o que mais fosse preciso o verdadeiro heavy metal dos anos 80.
«Crystal Logic» foi originalmente lançado pela Roadster Records, editora fundada pelo próprio Mark Shelton e o baterista Rick Fisher, entre outros. A propósito, apenas no seguinte «Open The Gates» entraria para bater nas peles e nos pratos o maníaco Randy “Thrasher” Foxe, que marcaria profundamente o som da banda, tocando em todos os seus clássicos daí até 1990. Dele disse uma vez um excelente baterista da nossa praça, ao ouvir Manilla Road: “Este tipo devia tocar com quilos de droga no cérebro porque eu não percebo o que ele está a fazer.”
É um álbum em que desfilam temas marcantes e inesquecíveis, logo a começar pela incontornável «Necropolis», provavelmente a música de que se fizeram mais versões ao vivo dentro do epic metal underground (até eu próprio entre os culpados). Apenas nas edições de 2000 em frente o álbum inclui o excelente tema-bónus «Flaming Metal Systems», que tinha sido incluído (com o título incorrectamente escrito) no LP de compilação «U.S. Metal Vol. III» da Shrapnel Records, igualmente de 1983.
«Crystal Logic» é uma obra tão formidável que a ela até se perdoa ter uma música radio-friendly (como era aliás corriqueiro na época), a foleira «Feeling Free Again», que destoa do álbum de uma forma que já nem se nota aí pela milésima audição. Além de tudo isto tem uma magnífica capa na melhor tradição das bandas Underground dos anos 80, um espectáculo a aerógrafo em que se vê ao longe a desconcertante cidade dos cristais, e em primeiro plano os bárbaros invasores, em pose de gloriosa conquista, enquanto um deles, tendo tido quiçá uma educação algo mais esmerada, lava as mãos antes do ataque. Terão trazido as galochas, perguntamo-nos nós, uma vez que a única porta da cidade tem um rio a entrar por ela adentro. As interrogações que estas capas suscitavam eram verdadeiramente assombrosas.
Aqui fica a minha comovida homenagem a mais um herói caído… mas não apenas mais um! Alguém cuja música e cuja simpatia tocaram milhares ao redor de todo o planeta, e que deixa álbuns fenomenais e grandiosos para serem ouvidos ao longo dos tempos. Que descanse em paz; a sua memória perdurará sempre naquilo que nos trouxe: heavy metal to the world!