“Não sei porque é que só agora é que conseguimos cá vir, ao fim de 40 anos. Vocês são altamente!“, exclamava um copiosamente transpirado mas notoriamente feliz e sincero Dale Crover no final da épica actuação dos MELVINS em Lisboa. Os nossos colegas e leitores que tinham estado no Hard Club, no dia anterior, poderão confirmar se a mesma coisa terá sido dita no final do concerto portuense, mas se não foi, certamente terá sido pensada, pelo menos. É de facto ridículo que uma banda da dimensão e influência artística como esta só tivesse, nos 40 anos de carreira que celebram com esta digressão, uma única passagem por Portugal no seu currículo, precisamente a meio dessa trajectória (vai fazer no próximo dia 20 de Julho precisamente vinte anos), em Vilar de Mouros. Esperemos que o padrão se quebre e que não voltem cá novamente só aquando da celebração dos 60 anos de carreira – e temos a certeza que o rei Buzzo e o bom do Dale ainda vão andar por aí bem rijos nessa altura -, porque fazem, de facto, muita falta. São o tipo de banda que, apesar de tocar muito frequentemente (ainda que noutros países), consegue ainda tornar cada concerto seu num verdadeiro acontecimento, e manter um apelo universal. Bastava olhar ontem para o público que esgotou, obviamente, o Capitólio – mais datas adicionassem, mais esgotariam -, e perceber que quase todas as “tribos” das variadíssimas culturas musicais estavam representadas. Malta de todos os estilos, de todas as idades, muitas caras conhecidas da “cena” (não se pusessem a pau durante a «Honey Bucket» e poderiam ter visto o “nosso” Pedro Roque a voar ao lado da vossa cabeça, por exemplo), tudo junto com um único propósito, que era o de curtir milhões esta banda que se tornou, por mérito próprio, numa paragem obrigatória transversal a todos os submundos da música pesada e não só.
Apesar do atraso, foi ainda assim uma boa ocasião para se dar esta estreia nas duas maiores cidades do país. Com muita gente a vê-los pela primeira vez – incluindo este que vos escreve, que finalmente quebrou essa maldição que o assombrava há décadas -, os Melvins decidiram celebrar as suas quatro gloriosas décadas de existência com um setlist invulgarmente user-friendly. Para um pessoal que, durante larga parte da sua carreira, fez jus ao epíteto de “banda esquisita” e passou por fases em que deu inúmeros concertos, naquela onda meio à Type O Negative, em que se recusavam a tocar o que seria óbvio, com alguns deles a entrarem mesmo por um regime experimentalista que mais ficava a dever ao drone do que outra coisa, a actuação que andam a proporcionar durante esta digressão é mesmo para ser saboreada. Tocam “todas”, basicamente, e se se tivesse feito um inquérito prévio ao público presente para saber qual seria a sua escolha ideal de temas para ouvir, não andaria muito longe disto. Mantendo três daquelas com que presentearam Vilar de Mouros há vinte anos («Let It All Be», «Revolve» e «Night Goat», esta última com direito a um comovente singalong do público com o riff principal), passaram por quase todos os seus momentos mais emblemáticos, com o «Houdini» (falta a «Copache» às que já mencionámos neste texto) e o «Bullhead» («Zodiac», «Your Blessened» e a colossal «Boris» como único encore) a assumirem natural destaque, mas também com uma agradável passagem pelo fantástico «(A) Senile Animal» (a tenebrosa «A History Of Bad Men» e aquele pára-arranca delicioso de «Blood Witch») e até o recente «Bad Mood Rising» a mostrar que também merece fazer parte da festa com um par de temas que assentaram que nem uma luva lá pelo meio. Tal como, aliás, uma Melvinizada «I Want To Hold Your Hand» dos Beatles, que o público bem tentou cantar, mas que o Buzz insistia em cortar a meio das bem conhecidas melodias com hilariante chinfrineira da sua guitarra. Delicioso. Mas até neste setlist “amigável” continua a haver coisas que só mesmo com os Melvins é que resultariam, e que ilustram bem o planeta à parte em que vivem. O exemplo mais clamoroso é precisamente a «Boris», a tal que deu o nome a uns japoneses que também vivem lá algures num planeta artístico longínquo e habitado só por eles (e que também deram um dos concertos do ano há umas semanas atrás). É, de facto, juntamente com aquele trio de conclusão «Honey Bucket» / «Revolve» / «Night Goat» que elevou o fever pitch dentro do Capitólio a todo um outro nível de maluqueira, um dos seus temas mais marcantes e mais conhecidos, e faz todo o sentido que seja o encore, mas… ao mesmo tempo, segundo as “regras” normais disto tudo, que eles olimpicamente ignoram, também não faz sentido nenhum. É, afinal de contas, uma montanha de barulho e riffs e zero refrães, de quase nove minutos, com letras do mais creepy que há (o Buzz diz que é sobre o gato dele, vá-se lá saber) e aquele final, que só mesmo aquele senhor seria capaz de pull off ao vivo. Mas nas mãos deste pessoal, parece uma malhinha orelhuda de três minutos com a qual toda a gente canta e delira, e ainda permite à banda ir saindo de palco, um a um, deixando o amalucado frontman sozinho naqueles minutos mágicos para acabar com a peça de teatro, que no fundo é o que isto também é. Só mesmo eles.
Foram também já muitos os formatos com que os Melvins se apresentaram ao longo dos anos, com o núcleo duro Buzz/Dale constantemente a refrescar o elenco que os rodeia e a configuração da banda. E se os saudosistas têm todos as suas “eras” favoritas em que gostavam de os ter visto, por exemplo, com o mítico Joe Preston no baixo, ou na altura dos dois bateristas, quando eram um quarteto, acompanhados por Jared Warren e Coady Willis dos Big Business, a verdade é que nem aí temos razão de queixa. Todo vestido de vermelho, em constante turbilhão de movimento, gritando encorajamentos vários para o público durante o concerto, o baixista Steven McDonald parece integrado no espírito dos Melvins como poucos antes na sua outrora rotativa posição, e correndo o risco de jinx it, até dá sensação de ter acabado, para já, com o feitiço que parecia pairar sobre as quatro cordas na formação dos norte-americanos. E falando de membros da banda, se é óbvio que o ponto focal de qualquer actuação dos Melvins é, sim, o senhor Roger “Buzz” Osborne, aka King Buzzo, um dínamo de energia e de expressividade – sem precisar de dirigir uma única palavra ao público a não ser um “thank you” de despedida -, que caso fossem precisas mais provas, mostrou durante aqueles dois minutos e meio finais de «Boris», sozinho em palco, de uma intensidade inimaginável, que é verdadeiramente um artista-maior, também é preciso colocar ao mesmo nível o incrível Dale Crover. Numa analogia um bocado a martelo, se Buzz é o ar (e McDonald o fogo, já agora), a transcendência artística, o Dale é a terra, é a base onde tudo assenta, o pulsar da natureza, as raízes a partir das quais tudo nasce e cresce. Eloquente e criativo como poucos por trás do seu kit, sem comprometer um pinguinho de impetuosidade que seja, ainda arranjando tempo para ir providenciando voz a alguns temas, é um músico ímpar sem o qual os Melvins como os conhecemos nunca teriam existido. Honra lhe seja feita. E é só de mim, ou com aquele cabelo e actual constituição física, dá ares ao Saul Goodman de vez em quando? Pode bem ser uma partida de um cérebro meio exausto, com todas as energias gastas a absorver aquele que foi um dos melhores concertos do ano. De qualquer ano, aliás.
Uma palavra final para os Vircator, que num contexto terrível para qualquer banda, em que ninguém está ali para os ver, tiveram a sensatez e maturidade de dar “apenas” meia-horinha do seu esforço, a medida perfeita nestas condições, tendo ficado mais uma vez uma excelente imagem do dinamismo do seu (post-)rock instrumental, enérgico, criativo e interpretado com paixão pelo quarteto que viajou de Viana do Castelo. Via Porto, claro, onde já tinham tocado no dia anterior. Um rico bálsamo introdutório para nos aquecer os ouvidos e prepará-los para o turbilhão que haveria de se seguir.
FOTOS: Estefânia Silva