Existem ligações evidentes entre a lenda grega de Hermes Kriophoros (Hermes Portador de Carneiros), mais as suas representações clássicas (como esta cópia tardo-romana de um vulto feito pelo escultor grego Calamis, no século IV a. C., pertencente à colecção do Museo di Scultura Antica Giovanni Barracco, em Roma), e a iconografia paleocristã que nos chegou datada do século II, na qual Cristo também surge como crióforo, mas traduzido para o significado paralelo de Bom Pastor: o salvador do rebanho.
A partir do mesmo período, os cristãos primitivos foram instrumentais na popularização de textos religiosos organizados no feitio de códice: o comum formato de livro (em latim, a palavra homógrafa da qual a nossa descende tem origem no étimo caudex que significa tronco de árvore). O códice não é uma “evolução” do formato em volume, o tradicional rolo (da palavra latina voluminen que significa coisa enrolada), e ambos os formatos co-existiram durante muito tempo, destinando-se a finalidades distintas. E existe, de facto, uma diferença enorme entre ler um texto escrito num volume e ler um texto escrito num códice.
Somente a partir da difusão do conceito de códice (a palavra códex é um latinismo que só entrou na nossa língua na segunda metade do século XVIII) é que pode falar-se em leitura, no sentido contemporâneo. Não estou, pois, de acordo com a ideia de que os primitivos suportes de registo manuscrito, que podem ser traçados até à civilização suméria, fossem proto-livros: penso que consistiram em outras tecnologias, ao serviço de objectivos variados, como enumerar, contabilizar e anotar, mas não foram veículos para a leitura reflexiva e interpretativa como os códices vieram a tornar-se. É por esta razão que eu considero que dizer-se que o advento dos eReaders consistiu num salto tecnológico da mesma ordem que aquele que se deu de prancheta para volume e de volume para códice e de códice manuscrito para livro impresso é uma arenga publicitária: a prancheta, o volume e o códice co-existiram e serviram diferentes propósitos, não podendo ser observados como provenientes uns dos outros.
De modos inesperados, o imago crióforo relaciona-se completamente com o códice. Para começar, a criação do códice – do livro – não teria sido a mesma sem os carneiros.
O uso da pele de carneiro como suporte para a escrita já era conhecido há muito tempo no mundo mediterrânico, mas foi na cidade grega de Pérgamo (na Turquia) que, no século II a. C., a manufactura de peles de carneiro (pergaminho), como alternativa ao papiro, ganhou uma grandeza e sofisticação inéditas até à data. Em síntese, o método artesanal da produção de pergaminhos era o seguinte: depois de esfolado o carneiro, a sua pele era mergulhada num recipiente cheio de água e cerveja para que ficasse limpa de impurezas e pêlos; em seguida, a pele era posta a secar ao sol num estirador que a esticava com força. Quando a pele enrijecia, estava pronta para ser raspada (tradicionalmente com uma espécie de faca de lâmina semi-circular, que viria a ser chamada de lunellarium pelos romanos), branqueada e cortada.
Na Europa, a manufactura de papel (palavra que procede de papiro – com efeito, o papiro e o papel têm muitas semelhanças), feito de fibras vegetais, como linho e cânhamo, despontou principalmente na Península Ibérica durante a ocupação muçulmana (chegaram-nos livros muçulmanos peninsulares, escritos em papel e datados de finais do século XI), mas isso não afectou a indústria do pergaminho – nem sequer com o advento da imprensa de caracteres móveis, em meados do século XV, posto que se imprimia em pergaminho. Mesmo assim, o papel depressa se popularizou, tornando-se um material cada vez mais barato – a mais antiga fábrica de papel da Península Ibérica, aproveitando para o efeito a força hidráulica, até já datava do primeiro decénio do século XV e ficava na cidade portuguesa de Leiria.
De maneira geral, os tamanhos padronizados de impressão de livros não mudaram muito: continua-se a imprimir em papel sob medidas influenciadas pelas dimensões proporcionadas pelas antigas peles dos carneiros que, ao serem retiradas dos estiradores, eram cortadas rectangularmente, de maneira a desbaratar-se as superfluidades correspondentes aos membros dos animais e obter-se uma prática superfície regular.
No mínimo, esse pergaminho rectangular podia ser dobrado ao meio até três vezes: à primeira, que oferecia duas folhas e quatro páginas, chamava-se folio (que deriva da palavra latina para folha – tinha esse nome, porque, de facto, era a primeira folha: o formato maior); à segunda, com a qual se obtinham quatro folhas e oito páginas, chamava-se quarto (a quarta parte); e a terceira, que oferecia oito folhas e dezasseis páginas, chamava-se octavo (a oitava parte). Os tipógrafos, que assim o desejavam, imprimiam em pergaminho e em papel livros de tamanhos mais pequenos que o octavo (o duodecimo, por exemplo, que equivale às proporções de um actual paperback ou livro de bolso), mas só com a invenção das impressoras contemporâneas é que foi possível imprimir-se livros e outras publicações em tamanhos maiores que o carneiro mais corpulento, porque o papel, embora nada tivesse de animal, era cortado de acordo com essa bitola.
A maioria dos livros actuais é impressa em papel, mas as suas dimensões referenciam ainda aquilo que eu chamo de Ovina Proportione: todos os leitores são, por essa razão, Hermes Kriophoros – e como Hermes é na mitologia grega o deus da linguagem, assim como o inventor do alfabeto, acho que é um pensamento muitíssimo adequado.
A influência dos carneiros sobre o mundo dos livros não se esgota aqui. A própria palavra texto provém do étimo latino textu que significa tecido ou fios entrelaçados e que se usava, sobretudo, para designar a lã.
Na sua obra Instituto Oratoria (As Bases da Oratória), o filósofo e orador romano Quintiliano (século I) diz que é preciso escolher bem as palavras e entrelaçá-las num têxtil elegante e apurado. Muitas expressões relacionadas com a escrita ou com o acto de contar histórias correspondem-se com a lã e seus novelos (como «perder o fio à meada»).