MARGINÁLIA E IMAGINÁRIO: As sanguessugas do tempo

Em mais um MARGINÁLIA e IMAGINÁRIO, enfiamo-nos na máquina do tempo de volta a 1851 para recordar o barómetro de sanguessugas.

Enquanto historiador da cultura e das mentalidades, atraem-me protagonistas e momentos que se afeiçoam à condição de nódulo liminal entre diferentes cronologias e epistemologias: em suma, ideias, construções, configurações, que não pertencendo já a um mundo velho, não adquiriram ainda a forma que lhes faculta a existência num mundo novo. Apresentado em 1851 na Grande Exposição de Londres, o barómetro de sanguessugas é um artefacto dessa natureza.

Construído pelo inventor e médico inglês George Merryweather, esse complicado aparelho englobava um conjunto de doze frascos de água, cada um contendo uma sanguessuga: a proposta era a de que os vermes se aperceberiam de subtis mudanças na pressão atmosférica, provocadas pela aproximação de tempestades, que, repercutindo na composição química da água, os obrigariam a mover-se nervosamente, accionando assim um dispositivo que tocaria um sino — neste caso, doze sinos, um por cada frasco.

Em teoria, as badaladas dadas pelas sanguessugas avisariam as autoridades responsáveis pelos transportes e pelo comércio marítimos de que o mau tempo se aproximava. O problema de prever a chegada e a duração do mau tempo tornara-se ainda mais premente desde o arranque da industrialização e da crescente rede de ligações comerciais marítimas e terrestres que distribuíam matérias-primas e novos produtos.

A Grande Exposição no Palácio de Cristal era, aliás, uma instituição que tinha como objectivo apresentar o estado de sofisticação a que chegara em meados de Oitocentos a ideia global de Progresso: mas embora evocasse na aparência o próprio Palácio de Cristal, erguido em ferro e vidro, o barómetro de sanguessugas, feito de vidro e madeira, não se assemelhava na substância ao espírito empírico e industrialista da sua época; de facto, a sua concepção enraizava na mundividência do dito barroco médico, em que as sanguessugas ocupavam — e continuariam a ocupar, diga-se — um papel central, em diversas terapias baseadas nas sangrias.

Espécie de carrossel atávico, misto de meteorologia e superstição, um barómetro de sanguessugas não teria hipótese de concorrer com a velocidade das, cada vez mais aperfeiçoadas, comunicações eléctricas telegrafadas — imaginando que, de facto, funcionasse.

Intersecção de um mundo em desaparecimento e de outro em consolidação, o espantoso e panopticóide barómetro de sanguessugas recorda a circunstância de que em cada período se tentará num determinado momento injectar o novo — quando já é apercebido, mas ainda não visualizado com clareza — num formato antigo — inadequado, mas empregado, porque nem sequer há capacidade para conceber que é possível inventar uma alternativa apropriada. São momentos que surgem como ângulos mortos no espelho do tempo.