No Verão de 1626, um pacote insólito foi entregue à reitoria da universidade inglesa de Cambridge: embrulhado num pedaço de linho estava um pequeníssimo livro — impresso no formato sextodecimo, inventado em meados do século XVI pelo tipógrafo francês Guillaume Rouillé (1518-1589). Em péssimo estado de conservação, ensopado e desfeito, tinha sido encontrado nas entranhas de um bacalhau acabado de amanhar no mercado da cidade — o que muitíssimo espaventou aqueles que, a essa hora, tratavam pacatamente das suas mercancias. Segundo o académico e eclesiástico que examinou o livro, este fora impresso em meados de Quinhentos e continha textos teologais de natureza protestante, inspirados pelos alvores da Reforma; poucos meses depois já circulava entre populares e eruditos uma nova versão impressa desses tratados, reunidos sob o título Vox Piscis, or The Bookfish — quase se poderia traduzir por O Livro do Bacalhau. O caso, eivado de potencial profético e apocalíptico, deu que falar e consistiu em mais um episódio extraordinário produzido pelo ambiente de profunda clivagem religiosa e política que obcecou intelectuais e governantes no decurso da Época Moderna.
Outro momento em que a loquacidade de um bacalhau se pronunciou foi em 1824, ano da absolutista Abrilada, pela letra de forma de um folheto intitulado O Bacalhau Justificado, ou Conversação do Futre Bacalhau com Dona Carne: de autor anónimo, o opúsculo foi impresso no Porto e nas suas linhas, entre outras jeremiadas, o “desprezível” Bacalhau seco comisera-se dos hipocorísticos com que é apelidado por quem é obrigado a comê-lo por não ter oportunidade de adquirir peixe fresco — entre eles, os pitorescos nomes «mata-frades» e «galinha de galegos» (já a Dona Carne queixa-se de ser preterida pelos portugueses em relação ao bacalhau — como em quase tudo, a óptica ancora a mentalidade).
Com efeito, a cultura do bacalhau no Norte de Portugal é poliédrica: desde meados de Quinhentos que o bacalhau era o peixe mais consumido na Europa, mas, no nosso caso, ele foi sendo abandonado gradualmente pela gastronomia de ambição chique; aliás, na altura em que o bacalhau escreveu um folheto a justificar-se, já o palato dos pobres se vislumbrava como seu destino privilegiado. Contudo, foi nesse estrato de plebe e pequena burguesia que o bacalhau, talvez predestinadamente, se reinventou num receituário diversificado: em principal na cidade do Porto e vilas próximas, como Aveiro — cujas salinas foram, desde cedo, centro de salga de bacalhau. Quase todas as clássicas receitas de bacalhau que adornam as ementas actuais foram invenções da imaginação setentrional — e haverá melhor forma de visualizá-lo do que observar as escolhas em que recaem as tradicionais vitualhas natalinas? Precipitando em direcção ao Sul do país, partindo de um Norte em que o bacalhau soberaniza, co-adjuvado pelo polvo (com algumas tímidas incursões da raia), penetra-se densamente em regiões algo ictiófobas, nas quais são aves, cabritos, borregos e porcos que protagonizam as ceias de Natal.
Em tempos que antecedem a hegemonia do bacalhau, o comércio de frutos do mar salgados fazia-se à conta de outras delícias: postas salgadas de baleia, por exemplo — e o requinte da língua salgada de baleia ainda faria, certamente, suspirar a velha guarda que pensando na Páscoa e em outros momentos jejuantes do calendário litúrgico costumava coarctar as proibições da ingestão de carne através do consumo de “peixes-honorários” como o golfinho (o dito porco-do-mar) ou o castor, cuja cauda “escamada” o redefinia como peixe para efeitos de gastronomia (que, nunca é supérfluo lembrar, nada mais significa que leis do estômago). Tudo para evitar, como dizem algumas fontes, a modorra de nessas ocasiões comer-se repetidamente peixe salgado.