Uma gravura intitulada Cunicularii, or The Wise Men of Godalming in Consultation (Os Cunicularii, ou Os Sábios de Godalming em Consulta, 1726), da autoria do artista inglês William Hogarth (1697-1764), consiste numa sátira ao estranho caso da camponesa inglesa Mary Toft, que aqui aparece a parir coelhos ininterruptamente enquanto o obstetra inglês Richard Manningham, da Royal Society, a inspecciona em busca de vestígios de fraude. Na vila de Godalming, no condado de Surrey, Mary Toft — de vinte e cinco anos de idade, analfabeta, casada e com dois filhos — dera à luz em Outubro desse ano dezenas de coelhos. Aos pedaços, pelo menos.
Mary Toft trabalhava na colheita de lúpulo; o marido, que pertencia a uma família que outrora fizera fortuna com lanifícios, trabalhava à jorna cortando tecidos. Em Abril de 1726, grávida de cinco semanas, Mary contou-lhe que encontrara um coelho no jardim, mas não o conseguira apanhar; nessa noite, acordou sobressaltada por ter sonhado que estava sentada no meio de um descampado, com uma grande ninhada de coelhos no colo. Em Agosto abortou espontaneamente: segundo as suas palavras expeliu «um pedaço de carne, tão grande quanto o meu braço, um monstro». No final de Setembro, sofrendo com violentas dores abdominais, chamou uma vizinha; quanto esta chegou, viu-a a parir bocados que só podiam pertencer a outra criatura de jaez infernal. Não sabendo o que pensar, a família enviou-os ao obstetra John Howard, da cidade vizinha de Guildford. Quando este os examinou, partiu de imediato para Godalming: os bocados que os Tofts lhe enviaram eram parecidos com pedaços de um gato articulados na espinha dorsal de uma enguia.
À chegada, a sogra de Mary, que também era parteira, mostrou-lhe mais pedaços paridos que também pareciam partes de um gato. Ao observar Mary, o obstetra boquiaberto viu-a expelir mais pedaços que, novamente, pareciam ser de gato. Howard examinou-a durante alguns dias; na altura em que estava prestes a desistir do caso, Mary pariu uma cabeça de coelho (que lhe provocou uma grande hemorragia). Para o médico mistificado já não restavam dúvidas de que o fenómeno era genuíno.
Nos dias seguintes, numa residência que o médico lhe encontrou em Guildford, Mary pariu dezenas de pedaços de coelhos. Entusiasmado, o obstetra relatou o caso por escrito a todos os colegas e enviou à Royal Society dois coelhos paridos por Mary. Convencido da autenticidade dos nascimentos monstruosos, Howard achava que o encontro que Mary tivera com o coelho no passado mês de Abril era o episódio responsável por imprimir na imaginação generativa da mulher o molde que procriava aquelas criaturas. Intrigado pela extraordinária história, o rei George I enviou dois emissários para averiguarem o que se passava: o astrónomo Samuel Molyneux, secretário do Príncipe de Gales e membro da Royal Society, e o suíço Nathanael St. André, cirurgião-real.
No dia em que foram recebidos por Howard testemunharam o nascimento de duas metades peladas de coelho com duas horas de intervalo: quando paria, Mary não expelia sangue, nem âmnio, mas lactava; depois de examinarem as metades dadas à luz concluíram que se tratavam de pedaços de coelhos preternaturais. St. André deu razão à ideia proposta por Howard de que as fortíssimas contracções uterinas desmembravam e pelavam os coelhos contra o osso pélvico e formulou uma teoria segundo a qual os coelhos preternaturais procriavam nas Trompas de Falópio antes de serem empurrados para o útero pelas contracções.
Nessa noite, Mary entrou novamente em trabalho de parto e St. André introduziu-lhe de imediato os dedos para garantir que o nascimento não era fraudulento: passados uns instantes, retirou uma enorme bola de pêlo. Nos momentos seguintes, Mary pariu outra cabeça de coelho. Transidos, St. André e Molyneux regressaram a Londres com esses pedaços.
O relatório dos emissários não convenceu o rei, que pediu ao cirurgião alemão Cyriacus Ahlers, outro homem de confiança, para examinar a mulher.
Ahlers envolveu-se de modo trapalhão na história de Mary: desconfiado de que o casal não passava de um par de vigaristas, fingiu acreditar na qualidade preternatural dos nascimentos de modo a ganhar-lhes a confiança, mas quando inspeccionou a mulher, ajudando-a a dar à luz mais pedaços pelados de coelhos, feriu-a, porque não tinha prática de obstetrícia. Entretanto, em meados de Novembro, St. André começou a escrever um folhetim intitulado A Short Narrative of an Extraordinary Delivery of Rabbits (Uma Breve Narrativa Sobre um Extraordinário Parto de Coelhos): a publicação do relato foi um sucesso, viciando o público inglês no fenómeno.
Os teatros ensaiavam comédias sobre mulheres que pariam animais espantosos para confusão das parteiras. Alguns clérigos declaravam que Mary era um coelho-demónio que se transformara em mulher para escarnecer dos homens. O rei era um dos principais interessados no caso, mas, desagradado com a inepta indagação de Ahlers e concluindo que aquelas circunstâncias excepcionais exigiam um indivíduo excepcional, ordenou a Richard Manningham que trouxesse Mary para Londres, de modo a ser observada com rigor.
Depois de um primeiro exame no qual não encontrou bizarrias, Manningham foi com St. André restabelecer-se num pub local; nem tempo teve para sentar-se quando Joshua Toft veio a correr ao seu encontro mostrando-lhe uma membrana que retirara de dentro de Mary, supostamente o fragmento de outra criatura preternatural. Manningham observou a amostra e achou que mais parecia um pedaço de bexiga de porco – e ainda fresco, pois tresandava. No final desse mês, cada vez mais desconfiado, Manningham alojou Mary num balneário público em Leicester Fields (hoje Leicester Square) e deu ordens para que ela fosse vigiada até quando fosse à casa-de-banho – mesmo que não o tivesse ordenado, os imensos visitantes que Mary recebia, desde físicos, jornalistas, curiosos do povo e da nobreza e, também, alguns libertinos ansiando uma derradeira titilação nos braços da “mulher dos coelhos”, não a perdiam de vista. Porém, Mary não parira nenhum coelho preternatural desde que fora transferida para o balneário — o que enervava bastante toda a gente. Finalmente, o dia 4 de Dezembro trouxe uma revelação inesperada: um porteiro denunciou que Mary o subornara para que lhe levasse «o coelho mais pequeno que encontrasse».
Depois do interrogatório que fez nesse dia ao porteiro e à família Toft, o juiz Thomas Clarges quis prender Mary por enganar o público e criar histeria de massas, mas Manningham convenceu-o a deixá-la ficar no balneário mais uns dias, de modo a reunir provas irrefutáveis de fraude, pois ela confessara ter pedido o coelho com o objectivo de comê-lo. Nos dias seguintes, Mary persistiu na versão de que pedira um coelho para comer, porque estava — verdadeiramente — grávida de coelhos sobrenaturais. Frustrado, Manningham ameaçou-a de que ou lhe contava a verdade ou ele dissecar-lhe-ia os órgãos reprodutivos para ver se geravam ou não coelhos; a ameaça surtiu efeito e Mary confessou: «não aguento mais», disse, «ainda me mato». A confissão foi puxada a ferros durante dois dias: acusada pelas autoridades de ser «uma notória e vil vigarista», Mary foi aprisionada na cadeia para vagabundos de Bridewell, em Tothill Fields, perto de Westminster. Passou o Natal na prisão e durante quatro meses foi exibida sem descanso pelos carcereiros aos visitantes que queriam ver a famosa “mulher dos coelhos”. Foi libertada em Abril de 1727 — e não saiu sozinha, como se verá em poucas linhas.
As partes de coelhos que Mary paria eram, evidentemente, introduzidas por ela própria, de modo a simular nascimentos preternaturais. O logro começara sem sistematização, com os pedaços de gato, mais a espinha de enguia (tentativa de recriar um monstro como os dos folhetos e relatos populares), mas depois de ter visto como a cabeça de coelho impressionara muitíssimo Howard achou mais prático continuar a parir apenas pedaços de coelhos; à medida que a charada se desenvolvia, os métodos refinaram-se, chegando ao pormenor de esfolar a carne para que não largasse pêlo. Foi depois descoberto que Joshua Toft era um cliente habitual de cunicultores e fazia questão de comprar-lhes somente os coelhos mais pequeninos; a desculpa que dava aos vendedores era a de que os nascimentos de coelhos sobrenaturais criavam na mulher uma grande fome por coelhinhos.
Não é claro porque razões os Tofts inventaram o ardil dos falsos nascimentos, mas considerando o esforço dispensado e o dinheiro que gastaram na compra de tantos animais é provável que achassem que o investimento lhes seria muitíssimo rentável. De que forma? Não pode descurar-se que a desventura dos coelhos ofereceu àquelas pessoas mais ou menos pobres, com trabalhos mais ou menos desrespeitados, a ilusão de que pertenciam ao centro do mundo, que era a Inglaterra do século XVIII. O que pode apurar-se é que os Tofts não foram inocentes brincalhões enrolados na própria partida, à laia de bola-de-neve, porque em 1740 Mary foi presa por guardar objectos roubados e por invasão de propriedade alheia.
No fundo, a capacidade de resistência física e psicológica de Mary Toft foi olímpica: não só aguentou a violência de introduzir pedaços de animais — com dentes, ossos e garras — para fingir dá-los à luz (a primeira cabeça de coelho provocou-lhe uma hemorragia) como a multiplicidade de intrusivos — e lesivos — exames ginecológicos, mais a pressão mediática avolumada pelo caso. Para coroar essa resistência com maior temeridade esclareça-se que Mary teve uma filha na prisão dos vagabundos (em Fevereiro) o que significa que ela estava grávida durante o logro dos coelhos – mas de uma criança.
Com efeito, desde a primeira observação que Manningham suspeitou que o útero de Mary tinha mesmo qualquer coisa lá dentro (é uma das conclusões que registou no primeiro relatório), embora, distraído pela conjuntura formidável dos coelhos, não tivesse sido capaz de descobrir o que era.
O facto de o bebé ter sobrevivido não só à prematuridade (Mary teve um aborto em Agosto de 1726 e a filha em Fevereiro de 1727), mas também às invasivas perscrutações dos médicos e a introdução de corpos estranhos na proximidade do útero é impressionante. A mãe nem sofreu nenhuma infecção.
Quanto à credulidade dos obstetras, em meados de Novembro de 1726, o cirurgião-real St. André e o seu acompanhante astrónomo inspeccionaram Mary Toft pela primeira vez no dia em que ela pariu as duas metades de coelho com duas horas de intervalo: por iniciativa do próprio St. André examinaram os pulmões da primeira metade a ser expelida e descobriram que estes flutuavam na água, significando que em algum momento da sua miserável existência a criatura respirara ar. E nos intestinos da outra metade descobriram matéria fecal. Esses factos deveriam tê-los chamado a atenção para a urdidura, mas, na verdade, sentiam-se tão enfeitiçados, tão desejosos de pertencerem ao grupo de indivíduos a quem prodígios acontecem que encontraram um modo de contextualizar as provas no pensamento mágico: escreveu St. André que os coelhos por serem preternaturais «não obedecem às leis físicas».
Mary Toft morreu a 13 de Janeiro de 1763, com sessenta anos. Não se sabe onde foi inumada. No condado de Surrey durante muito tempo os maridos não deixavam as mulheres trabalhar sozinhas nos campos, nem os pais tiravam os olhos de cima das filhas – pois nunca se sabia quando e onde é que reapareceria o coelho responsável pelas gravidezes de Mary, o tal que lhe fugira no jardim, em Abril de 1726.