1860 foi o ano em que o académico alemão de ascendência portuguesa Johann Reis inventou o telefone (antes de o inventor britânico Graham Bell ficar famoso em 1876 pelo mesmo motivo) – circunstância que teria empolgado outro luso-alemão fascinado com as novidades de progresso técnico produzido pela Europa de meados de Oitocentos: o jovem D. Pedro V, rei de Portugal, filho da rainha D. Maria II e do rei consorte D. Fernando de Saxe Coburgo Gotha. No entanto, se é possível dizer que o erudito construtor do Palácio da Pena, em Sintra, representava o temperamento romântico, cosmopolita e alegre da sociedade germânica do seu tempo, talvez possa dizer-se que D. Pedro V revelava no carácter e na actuação os aspectos austeros e puritanos que essa sociedade também acalentava – e, de facto, pai e filho nunca se entenderam.
Sucumbido subitamente por uma febre tifóide aos vinte e quatro anos de idade, a 11 de Novembro de 1861, D. Pedro V não teve oportunidade de mostrar à história a configuração madura do seu desempenho do poder; embora possa conjecturar-se que facilmente teria pendido para uma aproximação ao absolutismo (paradoxalmente, desprezava o pensamento do tio-avô absolutista D. Miguel e os antigos protocolos e prerrogativas da nobreza): descontando certas afirmações tardias do próprio que credibilizam este pressuposto, as cartas íntimas redigidas pela esposa – a princesa prussiana D. Estefânia de Hohenzollern-Sigmaringen (de igual modo austera, puritana e falecida de forma fulminante de febre tifóide, a 17 de Julho de 1859, aos vinte e dois anos de idade) – já pressagiavam prematuramente essa possibilidade nas críticas políticas e morais que faz à monarquia constitucional, dizendo que o único liberal em Portugal era o marido, mas que sozinho ele nada podia fazer contra um regime inteiro.
Independentemente da probabilidade dessa hipótese, sabe-se que D. Pedro V foi um rei avançado, entusiasta das inovações técnicas, anti-esclavagista, amante de história e cultor das letras (no ano da sua morte fundou com o seu próprio dinheiro o Curso Superior de Letras). Foi, também, genuinamente adorado pelo povo, graças às surpreendentes demonstrações de solidariedade aquando das imensas e demoradas visitas que fez em hospitais aos moribundos de cólera e de febre amarela ao longo das epidemias que flagelaram a população do reino na década de 50; quando morreu, as massas rebelaram-se em desespero porque entre elas lavrara o rumor de que o rei santo fora envenenado: tumultuada, a plebe destruiu a casa do duque de Loulé – que se acreditou ser o mandante do regicídio –, vandalizou os paços nobres que encontrou pelo caminho e deixou estendido na estrada, preso à vida por um fio, o conde da Ponte. Para apaziguar a turba, o novo rei, D. Luís, irmão de D. Pedro V, teve de mostrar-se acompanhado pelo pai a uma janela do Palácio das Necessidades prometendo que sairia dali imediatamente de modo a «ficar fora do alcance dos assassinos». A entronização deste irmão adveio do facto de D. Pedro V não deixar descendência – com efeito, a autópsia feita a D. Estefânia revelara que esta morreu virgem; e nessa altura os físicos mussitavam que os soberanos sofriam de anafrodisia. Não faltava quem suspeitasse que o rei era impotente, mas neste aspecto a psicologia puritana esclarecerá melhor a questão: sabe-se que D. Pedro V várias vezes quis afastar de cargos públicos indivíduos que considerou demasiado sensualistas e até libidinosos – por conseguinte, não lhe desagradava a ideia de criar uma corte moralista, assexuada, anafrodisíaca, à sua semelhança.
Porém, se em 1860 o telefone luso-alemão de Reis não galvanizou o público de Lisboa, o mesmo não se pode dizer da passagem pela capital em meados de Maio do faquir hindu Socró e da sua assistente Mademoiselle Rose – loura espampanante a quem os transidos galantes lisboetas prontamente apelidaram de Rosa Mística. A atracção deste excepcional espectáculo consistia num acto de levitação e tinha lugar às segundas, quartas e sextas-feiras, às oito horas da noite, numa casa na Calçada de São Francisco – local oportuno, posto que a levitação é um dos milagres atribuídos a São Francisco de Assis.
Aliciados por centenas de anúncios impressos e pelos brados dos pregoeiros, os lisboetas lotaram todas as sessões nos dias agendados, pagando cem reis por cada entrada – quantia que apesar de chamada “tostãozinho” não era nenhuma bagatela. O retrato físico deste faquir cavalheiresco de maneiras requintadas, que comunicava com voz suave a cada assentada a «honra de ser português», é o de um indivíduo de pele negra, magérrimo e muito alto, de cabelo liso e luzidio. O acto que assombrava a assistência consistia no seguinte: deitava-se em cima de um cobertor estirado no soalho e ele e a ajudante cantarolavam, murmurantes, uma tristonha endecha ininteligível; a dada altura, o faquir entrava em transe e levitava lentamente «sem apoio ou auxílio de espécie alguma». Era permitido ao público verificar a inexistência de apoios ocultos por cima e por baixo de Socró, mas aos desconfiados que tentavam examinar o corpo suspenso a cerca de dois metros de altura, a Rosa Mística recomendava: «– Ne touchez pas, s’il vous plait!… Ne touchez pas!…» Em seguida, descia deitado, demoradamente. Dizia-se que metade das receitas do espectáculo eram doadas aos pobres de Lisboa e considerando que a profusão à porta da casa na Calçada de São Francisco era de tal grandeza que amiúde a guarda municipal tinha de intervir para repor a ordem, conjectura-se que não seria causa de displicência.
Contudo, numa dessas noites o faquir recebeu instruções para receber mais tarde e em exclusivo uma certa «alta personagem» que pretendia ver o prodígio mais comentado da cidade. Na noite reservada para esse fim em específico, uma carruagem parou na praça que hoje se chama do Município e de dentro dela saíram três indivíduos vestidos à paisana que se dirigiram sem darem nas vistas à Calçada de São Francisco. Eram eles o rei D. Pedro V, João de Saldanha da Gama Guedes de Brito, o já referido conde da Ponte, e D. Carlos de Mascarenhas, brigadeiro de cavalaria. Escreveu o conde da Ponte no seu relato: «Eram onze horas quando entrámos na casa onde o vulgo dizia haver feitiçaria. (…) O índio [indiano] falava inglês muito correctamente, tendo declinado [declarado] primeiramente a sua qualidade portuguesa. Era uma pessoa afável, instruidíssima e demonstrando grandes conhecimentos. (…) Vimo-lo levantar-se lentamente no ar; medi a altura que atingiu oito palmos [cerca de um metro e oitenta]. Assim se conservou mais de cinco minutos. (…) Não havia fraude alguma, o que verificámos cuidadosamente. Estávamos absortos com o que víamos. O índio disse, então, com voz sumida: «– Vou descer!» E desceu muito lentamente, levando mais de dez minutos a chegar ao solo. A estrangeira [a francesa – pelo contrário, o indiano, considerado português, não é chamado de estrangeiro], com muito cuidado, tomou-lhe as mãos e ajudou-o a levantar-se. Apresentou depois insensibilidade completa quando a sua companheira lhe cravou agulhas compridas nas mãos, braços, rosto, pernas, lóbulos das orelhas e na língua, não vertendo, sequer, uma gota de sangue.»
Porém, o truque de Socró que deixou estupefactos os três espectadores foi o de ter adivinhado a identidade da «alta personagem»: «Não quis [Socró] aceitar a lembrança que eu [conde da Ponte], por ordem, dada em voz baixa, lhe quis dar. O dito índio, dando mostras da sua grande deferência e respeito, foi despedir-se de nós até à porta da rua, e disse com o maior acatamento para o meu incógnito companheiro: – Que o Grande Espírito da Eternidade ampare e guarde a pessoa de Vossa Majestade!… Pessoa alguma lhe tinha dito quem era a Alta Personagem que desejava assistir ao impressionante e extraordinário fenómeno. El-Rei conversou com o índio, em português e inglês (…) À uma da noite Sua Majestade recolheu aos seus aposentos, não tendo trocado connosco uma só palavra durante todo o caminho para o Paço das Necessidades, indo sempre muito pensativo.»
Em que pensava? Católico puritano e ascético, talvez pensasse em São Francisco de Assis – reputado levitador como o faquir Socró – e que ele próprio, o rei, também se chamava Francisco de Assis. Todavia, não teria discernimento sobrenatural suficiente para adivinhar que morreria no ano seguinte – muito menos que a morte o levitaria para as alturas de uma santidade popular que se cifra como antítese dos sulfúricos rumores com que o restante panteão dos Braganças se polvilha, qualificados de celerados, maníacos e concupiscentes pela propaganda política adversária. Também neste aspecto, O Esperançoso permanece como uma raridade: nenhum rei contemporâneo português foi tão venerado ou hagiografado.