Em meados do século XIV, um porcariço (ou porqueiro) francês foi acusado de sodomizar outro porqueiro que tinha oito anos de idade; diagnosticado com a chamada Doença de São João (um dos nomes populares dados à epilepsia), o agressor foi exilado em vez de ser executado. Porém, passado pouco tempo foi preso em outra cidade por reincidir no mesmo tipo de delito e dessa vez não escapou de ser queimado na fogueira. Esta síntese de um caso medieval será uma introdução útil a alguns aspectos da profissão de porcariço, tal como era praticada na Idade Média e na Época Moderna. Na Alta Idade Média, ela era desempenhada, sobretudo, por escravos, servos ou indivíduos condenados por diversos tipos de crimes (como, por exemplo, os de violação ou de aborto, segundo a lei visigótica), que conduziam por densas florestas e silvados arrabaldinos as varas numerosas desses animais; isolados do resto da população, o convívio íntimo que os porqueiros (e as porqueiras, note-se) mantinham com os porcos dos seus senhores operava na mente dos observadores que os encaravam com repugnância uma transferência comportamental sob a qual o porqueiro também era avaliado severamente como sendo impuro, lascivo e caprichoso, um ente orientado não pela razão, mas por apetites e compulsões impossíveis de controlar. Nesse sentido, o porcariço trecentista que encontrámos no início do texto é um exemplo paradigmático do que seria esperado de alguém com esse ofício. Daqui decorre que o estatuto social dos porqueiros era baixíssimo. Não é, pois, arbitrária a crença de que Adão se tornara porqueiro depois de ser expulso do Paraíso; tradição consolidada na patrística pelos Diálogos (404) de Sulpício Severo (c.363-c.420). Não chegou até nós nenhum regimento sobre a actividade destes porqueiros, que muitas vezes se tornava uma tradição familiar, mas, curiosamente, sabe-se os nomes de dois porqueiros galegos que viveram na segunda metade do século X: Aulfus e Petro Aquilion.
O porco medieval era muito diferente do actual porco doméstico de pele rosada (este somente desenvolvido por suinicultores no século XVIII, que procuravam maximizar o volume de carne por indivíduo): coberto de pêlo crespo, cuja cor variava entre o preto e o castanho escuro, era um animal robusto de pernas compridas, de caninos afiados e portador de um feitio imprevisível; a sua condição marginal de bicho pastoreado pelos bosques, onde se alimentava de frutos, cogumelos e pequenos animais, conduzia-o à proximidade de javalis com que se assemelhava e frequentemente acasalava, perpetuando nesse feitio os traços mais silvestres. Os seus biorritmos eram observados de perto e regulados pelos porqueiros, segundo as necessidades do calendário litúrgico e da periodicidade das feiras. Talvez poucos servos conhecessem tão bem os domínios dos seus senhores quanto os porqueiros que diariamente percorriam as áreas mais inóspitas nas suas solitárias transuínumâncias.
No recrudescimento urbano da Baixa Idade Média, todavia, alguns porcariços já criavam os seus porcos nas cidades — em praças ou em logradouros — e andavam pelas ruas com eles, dando-lhes oportunidade de comerem toda a espécie de matérias espalhadas pelo chão, como restos orgânicos, dejectos e carcaças de animais. Do facto de a carne do porco ser naturalmente saborosa independentemente de ele saciar-se com os sobejos mais ignóbeis advinha a sua fama de “milagre vivo” que era capaz de regenerar o lixo em suculência.
Talvez o precedente para a permissão dos porcos andarem com relativa liberdade pelas ruas (algumas, todavia, estavam-lhes interditadas e podiam ser confiscados caso os porqueiros para aí os levassem) tenha origem na vocação porcariça dos curiosos frades antonianos franceses, reputados pela assistência que prestavam aos doentes de epilepsia (de que padeceria o tal porqueiro do início) e que desde o século XI se dedicavam à criação de porcos — os chamados “porcos de Santo Antão”, reconhecíveis pelos sinos que traziam ao pescoço. Não obstante esse antigo privilégio, a partir do século XV também eles foram sendo, sucessivamente, proibidos de andar pelas ruas, assim como a generalidade dos animais — proibições de difícil aplicação e muitas vezes esburacadas de excepções. Por exemplo, observadores estrangeiros ainda registaram no final de Setecentos o hábito da matança do porco que os lisboetas faziam em Janeiro às portas das casas, diante das quais acendiam fogueiras para chamuscar-lhes as cerdas. A cidade nunca conseguiu suburbanizar totalmente os animais.
Na imagem que ilustra este artigo — uma iluminura do artista francês Jean Colombe (c.1430-1493) integrada no quatrocentista livro de horas Le Très riches heures du duc de Berry — vê-se um porcariço e os seus ajudantes, mais um mastim, a conduzirem uma vara de hirsutos porcos de reconhecível tipo medieval e moderno por uma floresta, numa composição que não andaria longe da realidade, efectivamente: a cena tem lugar em Novembro e consiste na engorda dos porcos que antecede a matança e a salga da carne que eram habituais às vésperas do Natal. A vara numerosa apresentada na iluminura também veiculará o significado de valorização que os porcos davam às florestas dos senhores: quanto mais capacidade tinham para alimentar porcos, mais valiosas eram.
No entanto, à medida que na Época Moderna iam estiolando por motivos variados as áreas florestadas (pela exploração da madeira para a construção ou pelo alargamento acelerado dos espaços urbanizados) desaparecia este tipo de criação itinerante que, às vezes, tinha na gente das profissões fora-de-muros, como moleiros, padeiros e lenhadores — tipos sociais que também despertavam a maior desconfiança —, os seus principais actores. Contudo, para as mentes coevas, o porqueiro seria o mais marginal e até desprezível de todos — e era-o já nos tempos da Grécia Antiga, pelo que é surpreendente, por exemplo, que Homero trate na Odisseia (c. VIII a.C.) o fiel porqueiro Eumeu sempre pelo epíteto de «divino».